Neste ano o golpe de Estado de 1964 completa meio século. Trata-se de um evento que ainda marca a vida do País e de muita gente. Continua a ser um grande mal-entendido do Brasil com a sua História – do ponto de vista político, o maior deles.
Do nascimento à decadência o regime durou 21 anos. O País que voltou às mãos dos civis exibia economia 3,5 vezes maior, inflação de dois dígitos mensais, insolvência externa, imensas demandas sociais, Constituição ilegítima e atraso político renitente. Os prejuízos dessa herança durariam décadas.
Tanto pessoas que sofreram diretamente os efeitos do golpe como outras que o promoveram ou apoiaram apostavam que suas consequências não seriam de longa duração. Lembro-me de uma conversa em 1.º de abril, numa casa na cidade de Duque de Caxias, onde tínhamos marcado uma reunião, àquela altura, clandestina. Sentados em torno de uma pequena mesa, sala pouco iluminada, trocamos figurinhas pessimistas sobre a situação, todos duvidando da possibilidade de, aliado a Leonel Brizola, João Goulart resistir no Rio Grande do Sul, para onde fora ao deixar Brasília.
Demístocles Batista, líder do Comando-Geral dos Trabalhadores, dirigente ferroviário e membro do PCB, avaliava: “Existe a possibilidade de o golpe se pessedizar. Juscelino aderiu nos últimos dias, os caciques do PSD conspiraram. A moeda de troca será a garantia das eleições presidenciais no ano que vem. A repressão vai cair em cima da gente, mas o processo pode acabar virando briga de branco, UDN contra PSD, Lacerda contra Juscelino. A gente precisa permanecer agrupada, se proteger, não fazer loucuras e acumular forças enquanto isso acontece”. Sobre “a gente” a repressão foi imediata e galopante, incluindo a cassação de mandatos e direitos políticos por dez anos. Nesse aspecto, prevalecera a doutrina dos seguidores do governador da Guanabara, Carlos Lacerda, o pior dos golpistas de antes e de primeira hora: queria enfraquecer os adversários para ganhar a eleição de 1965.
Mesmo assim, a análise do Batistinha pareceu fazer algum sentido quando o novo presidente militar, marechal Castelo Branco, procurou legitimar-se mediante eleição no Congresso. Por cima, recebeu o voto de Juscelino, que era senador, e escolheu como vice nada mais, nada menos que José Maria Alkimin, antológico político pessedista mineiro, ex-ministro da Fazenda de JK.
Na verdade, a ideia de que viria um golpe transitório fizera parte da estratégia implícita no comportamento de Goulart, que nos últimos meses de seu mandato parecia preparar-se para deixar a Presidência e recolher-se, como Getúlio, em sua fazenda em São Borja, para ser convocado anos depois, em regresso triunfal, como o mártir do trabalhismo e das reformas de base. Mas os golpistas também perceberam a natureza do jogo. Apesar da promessas iniciais de Castelo de que concluiria o período presidencial de Jango e garantiria a eleição de 1965, seu mandato acabou sendo prorrogado por mais um ano e Juscelino, cassado. Lacerda lutara bravamente por essa cassação, mas recebeu o troco de não ter mais eleição direta para disputar.
A força da repressão e os sinais de que o governo de transição de Castelo não garantiria eleições livres e poderia abrir caminho para a ditadura declarada despertaram a primeira reação contra o regime, vinda justamente de jornalistas que haviam apoiado a queda de Jango, até se regozijado com ela. Foi o caso, por exemplo, do Correio da Manhã, cujos editoriais incitando o golpe haviam sido implacáveis. Os principais articulistas do Jornal do Brasil lançaram até um livro-reportagem cujo tom, em sua maior parte, era de comemoração do golpe, chamado Idos de Março. Mas não tardou para que os autores se tornassem críticos do regime militar, como se fossem protagonistas de uma “revolução traída”. Esse tipo de oposição revelava a decepção dos que tinham dado boas-vindas à remoção de Goulart por acreditarem que ela fora preventiva, pondo fim ao desgoverno e a um golpe que o próprio presidente estaria preparando. Subestimaram, é evidente, o peso da quebra da legalidade para o futuro da democracia.
Para as classes médias que deram suporte ao golpe nas marchas de São Paulo e do Rio e nas ruas de Belo Horizonte, havia uma motivação adicional para apoiar o novo regime: o medo da cubanização do Brasil e da guerra revolucionária que a implantaria, objeto de denúncia delirante do deputado Bilac Pinto, prócer udenista mineiro. Esse é um mito que ficou. Nada mais fantasioso do que supor que a esquerda, em 1963-64, se estivesse armando. Os famosos “grupos dos onze” que Brizola começara a cadastrar, com vista a criar um movimento nacionalista revolucionário, já eram insignificantes como instrumento político. Imaginem, então, para possíveis enfrentamentos armados.
Na UNE da época, uma entidade forte e independente, nem se cogitava do tema. Eu era presidente da UNE e nunca ouvi nada a esse respeito. Ao contrário. Éramos vítimas de agressões de grupos paramilitares desde 1962. As Ligas Camponesas de Francisco Julião, que haviam tentado, com apoio logístico e financeiro cubano, montar guerrilhas dois anos antes tinham fracassado. E o seu braço político, pequeno e desorganizado, era isolado de todos os setores mais importantes da esquerda.
Havia, sim, o famoso dispositivo militar de Jango, capaz, em tese, de deter um golpe ou de promovê-lo, como foi ensaiado em outubro de 1963, na tentativa de implementar o estado de sítio e a intervenção em São Paulo e na Guanabara, a que tanto nos opusemos. Mas tudo só em tese, como se viu nesses casos e no golpe de 1.º de abril, quando aquele dispositivo se desfez como bolha de sabão. A retórica tinha servido para assustar a classe média e conferir verossimilhança à farsa golpista.
No fim das contas, o País pagou um preço alto por uma lição, convenham, até bastante banal: não se golpeia a democracia em nome da democracia. A máxima valia para a direita brasileira dos anos 60 e vale hoje para muitos partidos que se dizem de esquerda na América Latina.