Bolívar Lamounier*
Até a eclosão do affair Erenice, no início de setembro, a eleição parecia se encaminhar para uma vitória arrasadora do governo. Muita gente (eu inclusive) chegou a temer pelo futuro da oposição portanto da própria democracia nos próximos anos.
Essa preocupação foi porém atenuada pelos resultados finais, menos ruins para a oposição do que se antevia. Desde o segundo turno, o foco das discussões deslocou-se para o futuro do PSDB, especificamente, com ênfase na necessidade ou não de uma refundação profunda do partido, na importância relativa de suas seções mineira e paulista e até na questão obviamente prematura da candidatura presidencial para 2014.
O capital político-eleitoral da oposição
Começo pelo capital com que a oposição (não só o PSDB) poderá em tese contar nos próximos anos. No Congresso, como é sabido, a correlação de forças será muito desfavorável aos partidos de oposição. O governo fez ampla maioria nas duas Casas, suficiente até para a aprovação de emendas constitucionais.
O DEM e o PSDB saíram-se bem na eleição de governadores, aquele elegendo dois e este seis inclusive os de São Paulo e Minas Gerais. Mas não podemos estimar a força política oposicionista diretamente a partir deste dado.
O sistema político brasileiro restringe bastante a latitude legítima de comportamento dos governadores. Em tempos normais, não lhes é lícito ostentar perfis marcadamente partidários ou de oposição X situação. O governador governa e representa todos os cidadãos de seu estado, não só os de seu partido. A atitude ostensivamente partidária adotada por Lula no tocante ao processo sucessório não deve ser considerada a regra e sim a exceção.
Outro indicador importante do capital oposicionista são os 44% da votação obtidos no segundo turno por José Serra. Tomar essa cifra como uma medida do eleitorado tucano seria exagero, mas ela tem uma importância inegável como estimativa da parcela que o lulo-petismo não conseguiu atrair. Os 44% que votaram em Serra no segundo turno fizeram-no com certo grau de reflexão, resistindo ao apelo embutido na popularidade de Lula e à interferência avassaladora da máquina pública nas eleições deste ano.
Oposição e atitude de oposição
Sem oposição, não há democracia. Não vejo como alguém possa discordar desta afirmação. Mas é preciso observar que ela tem dois significados diferentes. O primeiro diz respeito à força numérica do partido (ou partidos) de oposição, especialmente no parlamento. Neste sentido, como vimos acima, a situação do momento não é auspiciosa.
O segundo sentido, muito mais complexo, tem a ver com a existência de uma atitude de oposição. Quanto a este aspecto, a melhor intervenção das últimas semanas foi provavelmente a de um senador nominalmente situacionista : Jarbas Vasconcelos, do PMDB de Pernambuco.
Afirmando que não se intimidará com a maioria governista no Senado a partir de fevereiro, o senador pernambucano comprometeu-se a fazer uma oposição firme e altiva, o que obviamente não significa comportar-se como o fez o PT no período Fernando Henrique, opondo-se cerradamente a tudo o que o governo propôs.
Em essência, Jarbas concitou a presidente eleita a se distanciar do precedente estabelecido por Lula. Sugeriu-lhe manter uma relação de respeito com a oposição, uma convivência republicana, sem tentativas de cooptação ou de acordos de gabinete, [abstendo-se de pregar] o extermínio daqueles que pensam de forma diferente, pois, sem oposição, não há democracia.
O problema agora sou quem fala é que, ao longo do tempo e em vista das situações práticas que vão surgindo, os representantes oposicionistas eleitos podem legitimamente divergir quanto ao exercício de seu papel.
Não estarei a revelar nenhum segredo se disser que muitos eleitores tucanos sentiram-se frustrados com o desempenho do partido no transcurso do governo Lula.
A questão, como se vê, não é simples, desde logo porque envolve um jogo de espelhos, ou seja, avaliações dos representantes a respeito dos problemas que eles têm diante de si e dos representados a respeito das avaliações dos representantes. Reações dos deputados ou senadores às situações que enfrentam no plano do poder e dos eleitores acerca daquelas mesmas reações.
Dou um exemplo. Muitos eleitores criticam o comportamento da direção e dos parlamentares do PSDB (e do DEM) por não terem proposto o impeachment de Lula quando da conjuntura do mensalão. Entendem que houve medo, acomodação ou falta de tirocínio
Mas outros entendem, com igual legitimidade, que tal proposta teria sido imprudente e contraproducente ; que seu efeito mais provável seria precipitar uma crise institucional extremamente grave, dando ensejo a uma reação e a uma concentração de poder ainda maior nas mãos de Lula.
O que me parece razoável afirmar é que o PSDB, em todas as suas instâncias, demorou demais a perceber a metódica malevolência com que Lula se pôs em campo para subjugar, senão a oposição em geral, com certeza a oposição tucana de São Paulo.
Essa atitude de Lula ganhou nitidez nos últimos dois anos, a partir da unção de Dilma Rousseff como sua sucessora, mas era perceptível muito antes disso, desde o primeiro mandato, como qualquer pesquisador competente poderá averiguar.
Modelo de organização muito cacique pra pouco índio
Outra percepção negativa dos eleitores em relação ao PSDB é a de um partido de caciques. Absorvidos numa perpétua disputa de egos e projetos individuais, todos deixam em segundo plano a construção do partido enquanto tal.
A disputa entre José Serra e Aécio Neves pela candidatura presidencial e a frustração por Aécio não aceitar a posição de vice com certeza agravaram essa percepção.
Trata-se também aqui de uma questão complicada, com vários componentes. Há, em primeiro lugar, certa tendência a medir o PSDB pela régua do PT. Assim, o que deveria ser visto como sinal de vitalidade um partido com dois ou mais aspirantes viáveis à presidência passa a ser visto como sinal de fraqueza.
No senti
do inverso, o PT passa a ser admirado por sua agilidade (ou verticalidade) decisória, que só existe em razão do domínio da organização pela figura individual de Lula.
A eleição deste ano está bem viva na memória de todos. O dedazo de Lula não se limitou à invenção de Dilma como candidata. Em vários estados Minas Gerais e Maranhão, por exemplo -, os petistas foram obrigados a digerir sapos assaz indigestos .
O que essa verticalidade decisória expressa é evidentemente a total dependência do PT em relação a Lula um grande líder, quanto a isso não há dúvida -, o primeiro e único aspirante viável à presidência que o partido produziu em seus trinta anos de história.
Em partidos democráticos, sobretudo nos que tenham produzido uma segunda geração de líderes, a cúpula dirigente tende a ser plural. Isto é praticamente inevitável e quase sempre saudável, contanto que haja um mecanismo coletivo reconhecido e legítimo para a tomada das decisões mais importantes.
Juridicamente, o mecanismo existe: é a convenção partidária. Mas o mecanismo a que me refiro é anterior a ela. Não havendo consenso, bater chapa na convenção é o caminho mais curto para agravar os dissensos.
O que prejudicou o PSDB no período recente foi a falta de tal mecanismo. O método de tomar de decisões por meio de um pequeno grupo de notáveis foi posto em questão a partir de 2006, após sua primeira grande falha e na esteira da derrota de Alckmin para Lula na eleição presidencial.
O problema é portanto o mecanismo. Se, como parece, o colégio de notáveis deixou de ser adequado, o partido terá de inventar outro.
Outro problema, não menos importante, é o modelo de organização. Num eleitorado de grandes dimensões, como o brasileiro, a maioria não atina com este assunto. Mas ele é relevante para os eleitores mais politizados e ideológicos, que tendem a projetar no partido os ideais e anseios que nutrem a respeito da própria democracia.
Para muitos adeptos do PSDB, o problema é o partido não ser ainda um PT. Consciente ou inconscientemente, tais eleitores parecem desejar um partido que seja uma antítese ideológica do PT, mas que se pareça com ele em tudo o que se refere à organização: verticalidade, disciplina, militância, penetração nos mais variados grupos sociais, base sindical e corporativa etc.
Dessa forma, eles olham para o PT não como algo diferente, um indivíduo de outra espécie, mas como um exemplar mais desenvolvido da mesma espécie: um modelo (no que tange a organização) a ser atingido.
Esse raciocínio envolve um sério equívoco. Construir uma organização semelhante à do PT é uma empreitada fadada ao fracasso, mas esse nem é o ponto mais importante. A questão é que isso não é desejável.
Sim, o PSDB precisa de uma organização permanente, maior, mais ágil; precisa se capacitar para exercer de fato o papel de oposição e se preparar para as próximas disputas eleitorais. Mas entre fazer isto e emular a estrutura petista, vai uma grande distância.
Como organização e até certo ponto como ideologia, o petismo conserva traços incomodamente semelhantes aos de certos partidos não democráticos de esquerda e de direita.
Um desses traços é o culto da personalidade. Outro, quiçá pior, é o simplismo (pobres versus elite, por exemplo) ao que tudo indica deliberado que o PT estimula, transformando questões sérias num catecismo ideológico que ele possa levar a todos os nichos da sociedade. E não preciso me estender sobre práticas de aparelhamento, violação de dados sigilosos e outras que já chegaram abundantemente ao conhecimento público.
Resumindo, a disjuntiva que o PSDB cedo ou tarde precisará enfrentar não é entre um partido de notáveis como os de um século atrás, de um lado, e um modelo de penetração e arregimentação como o do PT, do outro. Entre esses dois extremos, há opções eficazes e mais consentâneas com a democracia.
Lições da eleição presidencial
A título de conclusão, mencionarei brevemente dois pontos que não posso desenvolver a contento neste artigo.
Do ponto de vista do PSDB, um dado importante da eleição presidencial foi a presença de uma base (pena não termos uma tradução adequada para o inglês constituency) tucana facilmente reconhecível como tal ; os 44% dos votos dados a Serra são clara evidência disso.
Com todas as restrições que a referida base pudesse ter ao partido ou ao candidato, o fato é que ela compareceu, votou, renovou seu apoio. Não veio por gravitação, veio por querer o robustecimento do partido em função de seu programa e como antítese ao lulo-petismo.
Em termos programáticos, o ponto-chave é incorporar de maneira efetiva o legado do governo Fernando Henrique. Em regiões e áreas específicas de atuação, numerosos prefeitos, governadores e parlamentares tucanos têm muito a mostrar.
Mas em nível nacional, o PSDB se confunde praticamente com o governo Fernando Henrique. A estabilização, as reformas, a renovação das políticas sociais e não menos importante, a postura de seriedade e probidade daquele período são a memória, a identidade, o capital político, enfim, do PSDB. No plano nacional, não há outro.
FONTE: http://pitacos-politicos.zip.net/)