Por José Serra
No formato atual das eleições para deputados, cada Estado brasileiro corresponde a um grande distrito com múltiplas vagas. O número de eleitos, por partido ou coligação, depende do número de votos obtidos pela agremiação em todo o Estado. Os mais votados até o limite das vagas obtidas pelo partido são eleitos.
Esse sistema enfraquece os partidos até porque, entre outras coisas, faz do correligionário o adversário a ser batido para se obter uma cadeira. A falta de cláusula de barreira nacional e a possibilidade de coligações fazem explodir o número de agremiações, que, em vez de organizarem as correntes de opinião, se transformam em trampolins para corporações e minorias organizadas.
Esse modelo é um dos responsáveis pela crise política: não só dificulta a formação de maiorias programáticas, como faz proliferar partidos de aluguel e coligações de conveniência. E eleva os custos de campanha a níveis alucinantes. Em São Paulo, cada candidato tem de disputar o voto entre 33 milhões de eleitores. Se gastar um real para chegar a cada eleitor, um candidato paulista terá de gastar R$ 33 milhões. E são milhares de candidatos. Isso não faz sentido e tem de acabar logo.
Já nos sistemas em que se elege um só representante por distrito – o modelo usual nas democracias avançadas – a área de disputa é limitada, o que favorece o contato com o eleitor e a vitória dos que representem maiorias. Também se reduz o número de partidos no Parlamento, garantindo maiorias estáveis e programáticas.
Os sistemas com distritos unipessoais – um eleito por distrito – podem ser de maioria simples (Reino Unido e Estados Unidos), maioria absoluta (França) ou mistos (Alemanha).
A eleição por maioria simples leva ao bipartidarismo. Minorias importantes são sub-representadas ou ficam fora do Parlamento. Na última eleição no Reino Unido, o Ukip teve 12% dos votos, mas só levou 0,2% das cadeiras. Nos EUA, nenhum independente foi eleito em 2016: bipartidarismo estrito.
No sistema de maioria absoluta, como na França, os dois primeiros colocados no distrito disputam segundo turno. O número de partidos capazes de governar vai para quatro ou cinco e as minorias conseguem representação. A maioria é regida pelo partido majoritário, com ou sem coalizão. Na França, os governos têm se baseado em coalizões de dois partidos, quando à direita, ou em mais partidos, quando à esquerda.
No engenhoso sistema alemão, distrital misto, o eleitor vota no candidato do distrito e também numa lista partidária. O voto na lista corrige a tendência do voto distrital a sub-representar minorias. A cada cadeira obtida nos distritos, o partido perde uma no critério de listas. O peso dos partidos no Parlamento tende assim à proporção de seus votos. É um sistema proporcional.
O peso do poder econômico no Brasil, que contribui para desvirtuar o processo eleitoral, deriva principalmente de termos adotado o pior dos sistemas: distritos enormes em que se disputam várias cadeiras. A sucessão de centenas de candidatos se acotovelando no horário gratuito beira o cômico. Isso enfraquece a ligação entre candidato e eleitor e amplia o poder de minorias. O sistema político transforma-se numa confederação de interesses particularistas.
Esse sistema é caríssimo e dá protagonismo ao poder econômico – não somente o empresarial. As agremiações de classe são ricas e eficientes máquinas eleitorais. E o crime organizado tem penetrado na política. Os candidatos têm de buscar votos em áreas extensas, exacerbando a demanda por financiamento. Aliás, isso permite compreender por que a proibição de doações por empresas tende a tornar inviáveis as campanhas: o atual sistema eleitoral brasileiro é corrosivo e só sobrevive se receber maciças transfusões de recursos.
Um dos poucos consensos, hoje, na sociedade brasileira é o de que tal sistema sofre de crescente perda de legitimidade, em todos os seus níveis. Mas ainda não é claro para todos que isso decorre do voto proporcional assentado em distritos gigantescos. Cerca de 80% dos eleitores não conseguem eleger seu candidato.
Como resultado, o eleitor não sabe quem seu voto elegeu e o eleito não tem por que atender a demandas de interesse geral. Tende a atender mais a interesses concentrados de seus grandes eleitores – financiadores, corporações profissionais ou sindicais e grupos de interesse –, produzindo uma cacofonia de demandas localizadas e não suscetíveis à agregação em programas políticos de interesse geral. Demandas majoritárias como expandir a produtividade, reestruturar o gasto público ou racionalizar o sistema tributário não conseguem maioria. A balbúrdia dos microinteresses domina a cena política e controla os escassos recursos públicos. A maioria dos eleitores não se identifica com as disputas políticas e desenvolveu repulsa pela representação partidária.
A meu ver, a adoção do voto distrital misto nos moldes da Alemanha, em que se preserva a sistemática proporcional conforme determinado em nossa Constituição, ajudaria a eliminar esse descolamento. As campanhas para o voto em lista e para o voto majoritário andariam juntas e se nutririam de um mesmo conteúdo programático. Com isso o eleitor saberia em quem votou e quem o representa em sua circunscrição – tenha ou não votado no candidato eleito. Conheceria também os compromissos assumidos pelo partido que escolheu. O risco de caciquismo pode ser eliminado por meio de listas partidárias que, a exemplo do que ocorre no sistema atual, reflitam as preferências dos eleitores – e não das direções.
Temos a opção entre manter com remendos o sistema disfuncional que nos trouxe até o abismo ou implantar o voto proporcional com distritos unipessoais, modelo que fortalece a governança, torna o eleito responsável diante do eleitor, democratiza os partidos e limita o peso do poder econômico, diminuindo as chances de corrupção. A hora é esta!
* JOSÉ SERRA É SENADOR (PSDB-SP)