Há que aceitar as diferenças e conciliar pontos de vista olhando para o horizonte
Em julho passado André Franco Montoro faria 100 anos. Num país desmemoriado é bom recordar: Montoro foi dos raros políticos capazes de, sendo realistas, não deixar de lado os sonhos, as crença, os valores.
Em época de pouco-caso com o meio ambiente, Montoro exortava as pessoas a plantar hortas, a dar preferência à navegabilidade dos rios, a deixar de lado os egoísmos nacionais e olhar para a América Latina, a dizer não à bomba atômica. E, principalmente, a entender que a política requer desprendimento e grandeza. Foi assim quando, quase sozinho, impôs ao antigo PMDB um comício pelas eleições diretas-já na Praça da Sé, em 1984. E outro exemplo nos deu quando, lidando com outros gigantes, apoiou Tancredo Neves para a disputa no Colégio Eleitoral.
Conto um episódio. Nos preparativos para a eleição indireta do novo presidente, a Veja publicou uma entrevista de Roberto Gusmão, então chefe da Casa Civil de Montoro, em que este, falando por São Paulo, lançava o nome de Tancredo Neves para concorrer pela oposição. Na época, além de muito ligado a Ulysses Guimarães, eu era presidente do diretório do PMDB de São Paulo. Ulysses, como fazia habitualmente, passou na manhã subsequente à publicação da entrevista pelo casarão que então sediava o partido. Perguntou-me de chofre: “Isso é coisa do Gusmão ou do Montóro?” – como ele pronunciava. Confirmei que era opinião do governador de São Paulo. “E você, o que acha?” Disse-lhe: “O senhor sabe dos laços de respeito e amizade que nos unem, mas nas circunstâncias é a opção para ganharmos no Congresso”. Redarguiu: “Quero ouvir isso do Montóro”.
E, assim, uma noite jantamos Montoro, Ulysses, Gusmão e eu, e cada um de nós, sob o olhar severo de Ulysses, confirmou suas opiniões. Ulysses não teve dúvidas: chefiou a campanha pela eleição de Tancredo. De fato, eleitoralmente quem poderia concorrer com Tancredo era Montoro, dado o volume de votos de São Paulo, que pesariam em eleições diretas. Tancredo, entretanto, teria vantagens táticas no convencimento de um Colégio Eleitoral composto por congressistas. Realista, Montoro logo propôs o nome mais viável. Vencemos.
Então estava em jogo a redemocratização do País, a convergência era necessária. Ela teve que ser ampliada para englobar os que antes eram adversários. Assim atravessamos o Rubicão e fomos, pouco a pouco, reconstruindo a democracia. Escrevo isso não só para valorizar a trajetória política e humana de gigantes como Montoro, Ulysses e Tancredo, mas para fazer paralelo com o presente.
Para o Brasil poder se reconstruir, depois do tsunami lulopetista, ingloriamente culminado com quem talvez menos culpa tenha no cartório, a ainda presidente Dilma, é preciso grandeza. Não nos iludamos: estamos atravessando uma pinguela, a ponte é frágil. Sempre fui renitente a processos de impeachment porque, mesmo quando bem fundamentados, como o atual, implicam destronar alguém que teve o voto popular e entregar o poder a quem também o recebeu, mas de forma mediata, em comparação com o(a) presidente(a) a ser destronado(a). Contudo a Constituição deve ser respeitada. Não adianta sonhar sem realismo com um plebiscito que talvez nos levasse a novas eleições. O mais provável é que nos levasse a uma escolha precipitada, se não à via indireta do Congresso Nacional, pela impossibilidade de se obter a renúncia da incumbente e do vice. Mesmo que a destituição de ambos viesse por ordem do Tribunal Superior Eleitoral, isso só ocorreria no próximo ano, quando a Constituição manda que a eleição seja indireta.
Logo, o que de melhor temos a fazer é fortalecer a pinguela, caso contrário caímos na água; e quem sabe, fortalecida, a pinguela se transforme mesmo em ponte para o futuro. Não é tarefa fácil e não cabem hesitações nem ambições pessoais. A desorganização da economia, da política e da vida do povo causada pelos desatinos dos governos petistas vai requerer serenidade, firmeza, objetivos claros e muita persistência. Não é momento para exclusões. O PT e seus aliados são partes da vida nacional. Que se reconstruam, desistam das hegemonias e se habituem à competição democrática e à alternância no poder.
Precisamos fixar algumas prioridades, aliás, sabidas. Primeiro, consertar a economia, começando pelas finanças públicas e por aceitar que gastar sem haver recursos não é política “de esquerda”, é erro; e quem paga as consequências dos erros (desemprego, inflação e desinvestimento) é o povo. Segundo, que não dá para governar com dezenas de “partidos” que são meras letras justapostas para obter vantagens financeiras; a cláusula de desempenho e a proibição de coligações nas eleições proporcionais se impõem. Terceiro, não basta o equilíbrio fiscal, é preciso alcançá-lo de modo favorável ao crescimento e à redistribuição de renda; o crescimento, em nosso caso, vai depender de o Estado bem desempenhar o seu papel de regulador (por exemplo, nas parcerias público-privadas e nas concessões) e se abster de abarcar tudo. Quarto, que algum sinal na Previdência (por exemplo, a fixação progressiva de uma idade mínima para as aposentadorias) e no mercado de trabalhos (por exemplo, apoiar a sugestão do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo que dá maior peso às negociações) será importante. Por fim, é preciso entender que a agenda do atraso, preconizada por setores fundamentalistas, que se opõem aos direitos sociais e às políticas de identidade (de gênero, cor, comportamento sexual, etc.) e equalizadoras (as cotas, as bolsas, etc.), é tão perniciosa quanto a paixão pela hegemonia voluntarista.