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A privatização da democracia brasileira

Floriano Pesaro

Interessa à população de São Paulo ceder um terreno público localizado no mais importante polo cultural da cidade ao Instituto Lula, cuja missão é cuidar do acervo histórico da gestão do ex-presidente e divulgar as suas realizações? Parece-me claro que não. O único beneficiado com essa transação será o PT e seu projeto de poder.

O projeto de lei 29/2012, do Poder Executivo, em tramitação na Câmara dos Vereadores, autoriza a concessão, sem concorrência, por 99 anos, de uma área pública na região central ao Instituto Lula.

São 4.300 m2, estimamos pelo mercado em até R$ 20 milhões, em uma região que começa a passar por intenso processo de requalificação. O projeto de lei nem sequer exige contrapartidas, à exceção da exigência de se abrir o espaço à visitação de escolas públicas.

Segundo o texto, no local será erguido um Memorial da Democracia, um museu para “dar visibilidade pública à cultura política democrática”. Mais adiante no mesmo texto, é possível entender melhor o que se entende por isso: nele será disponibilizado “todo o acervo documental referente aos oito anos de mandato do presidente Lula”.

Curioso e preocupante que justo o PT se arrogue o direito de portar a memória democrática do país.

Lembremos que esse é o partido que: expulsou seus deputados que votaram em Tancredo Neves; recusou-se a assinar a Constituição, marco da redemocratização, em 1988; e combateu duramente duas das maiores conquistas da nossa história recente, a estabilidade monetária e a austeridade fiscal, chegando ao ponto de ir à Justiça contra o Plano Real, em 1994, e contra a Lei de Responsabilidade Fiscal, em 2001.

O PT nunca fez uma autocrítica oficial quanto à sua posição nesses momentos cruciais do nosso amadurecimento democrático. Será que podemos confiar a ele o papel de guardião da memória coletiva de momentos como esses?

Tudo indica que estamos diante de uma privatização, não só de um terreno, mas da própria democracia brasileira. Afinal, é da natureza do PT apostar na confusão entre o público e o privado para fortalecer seu projeto de hegemonia no país.

Que melhor forma de fazê-lo do que garantir um espaço -e com dinheiro público- onde possam transmitir aos alunos de escolas públicas a doutrina petista segundo a qual a história do Brasil começa em 2003?

Quem sabe no portão de entrada do futuro museu algum companheiro se lembre de inscrever as palavras “nunca antes nesse país”…

O Instituto Lula pode não ter fins lucrativos, mas tem fins políticos bem claros. Não podemos esquecer que Lula continua extremamente ativo na política nacional e municipal. Já declarou que se envolverá de cabeça na campanha desse ano.

Que ninguém se engane: ceder esse terreno equivale, na prática, a doar o dinheiro dos contribuintes paulistanos para um partido político cuja prioridade número um é reconquistar a prefeitura da cidade.

São Paulo merece sim um Memorial da Democracia digno do nome. Um museu que registre as conquistas do povo brasileiro na luta contra o autoritarismo, que faça justiça à memória de líderes como Ulisses Guimarães, Tancredo Neves, Franco Montoro, Fernando Henrique Cardoso e do próprio Lula.

Essa seria sim uma destinação nobre ao terreno. É evidente, entretanto, que esse é um empreendimento que só pode ser implementado e administrado por uma organização tecnicamente qualificada, isenta e apartidária, não por um partido político, para que reescreva a história do Brasil à sua maneira.

Estaríamos dando alguns passos atrás na consolidação de nossa combalida democracia.

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