Por Claudia Carletto
As imagens amplamente divulgadas nesta terça-feira 3, dos ataques do advogado de defesa do empresário acusado de estupro André Aranha, contra a vítima Mariana Ferrer, não sem razão causaram a indignação da sociedade e de diversas autoridades do País. Mas, infelizmente, as cenas estarrecedoras, como bem qualificou o ministro do Supremo Tribunal de Federal, Gilmar Mendes, são apenas mais um triste capítulo do que acontece diariamente no país.
Flagrante desrespeito à dignidade humana, o episódio presta um desserviço à justiça pois desestimula outras vítimas na mesma situação a denunciarem seus agressores. Mais que isso, é um fenômeno que precisa ser compreendido como parte visível de um problema complexo, com raízes profundas na sociedade brasileira. A desqualificação moral da vítima é freqüente na maioria dos casos de violência contra a mulher. Uma prática que não se restringe aos tribunais, mas está nos comentários do cotidiano cada vez que o assunto é abordado.
E isso só ocorre por conta do machismo estrutural, arraigado no senso comum do brasileiro, dos mais altos cargos até a posição mais humilde, passando pelos tribunais. Que outra hipótese, senão o machismo permitiria os excessos expressos no vídeo da audiência de Mariana? Que razão explicaria a omissão do promotor e do juiz que não intercederam para resguardar os direitos da jovem diante dos insultos.
Somente uma sociedade essencialmente machista permitiria a utilização de uma pose ou do comprimento de uma saia num retrato no instagram, como contra argumento em um crime de estupro. Apenas um sistema doente é capaz de transformar uma vítima em algoz, seja no tribunal ou no balcão da padaria.
Há muito que a mulher brasileira precisa ter seus direitos, de fato, respeitados. Não basta ter uma robusta rede de atendimento às mulheres vítimas de violência, delegacias especializadas, ações coordenadas entre o ministério público, a defensoria, abrigos públicos para acolher a mulher e seus filhos em situação de risco, gastar horas que viram dias, meses e anos de capacitação de servidoras e atendentes para depois de convencer uma cidadã de que ela vai ter justiça, jogá-la em um uma corte que não julga o crime, mas a roupa que ela veste, a foto na rede social, ou a profissão com que ela ganha a vida.
O Brasil registra 66 mil ataques sexuais por ano e 263 mil casos de violência doméstica. Sem considerar a subnotificação, que é em si reflexo do pavor e das posições de poder que os agressores exercem sobre as mulheres. É difícil convencer uma mulher a quebrar o ciclo de violência e buscar justiça. Cerca de 4,5 mil mulheres são assassinadas no país e uma em cada quatro são vítimas de feminicídio, que via de regra é o cume de uma escalada de violências sofridas.
É preciso dar um basta, de uma vez por todas na sociedade que julga a mulher pela roupa, aparência ou por ter ou não beijado o criminoso que a estuprou. Não é não e estupro é estupro. É fundamental que a indignação materializada neste caso se transforme em ação. Em força, para evitar que milhares de mulheres estupradas ou mortas todos os anos, passem por uma derradeira humilhação diante de uma corte. No ambiente em que ela vai, com vergonha e receio, em busca de apenas de Justiça.
Para quem lida com a violência contra a mulher, diariamente, o episódio envolvendo a Mariana, seu choro e desespero, caem como um soco no estômago, um tapa na cara que não se pode revidar.
É preciso condenar atos como estes, mas é fundamentalmente necessário ensinar os meninos a se portarem com civilidade, que a mulher tem os mesmos direitos e não é um objeto, uma posse. É preciso que os mais velhos evoluam e que as vozes dissonantes das mulheres, que ainda aceitam o jugo do machismo, sejam esclarecidas. Ou a sociedade muda ou estamos fadados ao fracasso como civilização.
*Claudia Carletto, jornalista, Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania da cidade de São Paulo