Xico Graziano
Quando o Estatuto da Terra foi aprovado, em 1964, uma ideia econômica o amparava: era necessário favorecer, por meio da reforma agrária, o mercado interno no campo. Mas havia, também, uma esperta jogada política: entregar os anéis para não perder os dedos.
Na linguagem popular, esse era o significado da Aliança para o Progresso, doutrina de política externa formulada pelos EUA na época. Temerosos com a expansão da revolução cubana (1959), os gringos recomendavam reformas na estrutura agrária concentrada da América Latina.
O distributivismo agrário, ao combater o latifúndio, era, por certo, progressista. O seu intuito, todavia, favorecia a expansão do capitalismo no campo. Com aspirações consumistas, a classe dos novos proprietários frearia a revolução comunista que se desenhava.
Por essa razão, ideológica, os militares, ao darem o golpe em 1964, capturaram a tese da reforma agrária. Num lance sensacional de estratégia política, comandado por Castelo Branco, o Estatuto da Terra recebeu amplo apoio no Congresso Nacional. Foi aprovada uma “solução democrática” contra a perigosa “opção socialista”.
A História pregou uma peça na esquerda. A desejada modernização da agropecuária brasileira acabou dispensando a reforma agrária, substituindo-a pelo avanço tecnológico. Com ele o latifúndio se modernizou, elevou a produtividade, virou empresa rural.
Esquecida em seu sentido econômico, a reforma agrária retornou à baila dos anos 1990. Trocou de veste para se transformar na mais onerosa e ineficiente das políticas sociais. Impulsionada pelas invasões de terras e realizada sem nenhum planejamento, desgraçadamente levou os assentamentos a concentrarem a miséria, não o progresso rural. Fora as exceções.
Nada, porém, impediu o avanço do campo. O dinamismo brotou entre os pequenos e médios agricultores familiares, os trabalhadores com terra do Brasil. Um somatório de fatores possibilitou ao produtor tradicional trocar a enxada pelo trator: o crédito rural, a pesquisa agropecuária, a gôndola do supermercado. Os velhos sitiantes encontraram no cooperativismo sua força e no mercado, seu desafio. Na marra, viraram empreendedores.
Parte deles rompeu o núcleo familiar e subiu o Brasil para cultivar o cerrado. Uma verdadeira epopeia, semelhante à conquista do oeste norte-americano, configurou essa magnífica trajetória dos agricultores sulinos e paulistas rumo ao oeste baiano, ao sudoeste goiano, ao nortão mato-grossense, ao sul maranhense. Ninguém, há 30 anos, poderia imaginar tal transformação produtiva.
Nas regiões de agricultura mais consolidada do Sul-Sudeste, as modernas cooperativas passaram a dominar a roça. No Triângulo Mineiro ou na Zona da Mata, no norte ou na serra capixaba, no Paraná e em Santa Catarina, em Mato Grosso do Sul, por onde se anda se encontra uma nova geração de produtores rurais, mais jovens, mais competentes, mais conscientes. E mais ricos.
O impressionante salto da genética e do manejo animal demorou, na pecuária, apenas 15 anos para tornar o País o maior produtor de carnes do mundo. Na fruticultura tropical, no café de qualidade, nas flores e plantas ornamentais, na aquicultura nordestina, importantes personagens do espaço agrário surgiram. E brilharam.
Engana-se redondamente quem pensa que a modernização agrícola favoreceu somente os grandes capitais. No mundo do agronegócio a tecnologia supera o tamanho. Milhares de agricultores tradicionais, com área reduzida e gestão familiar de seus sítios, elevaram sua produtividade e progrediram na vida, integrando-se aos nascentes mercados. O caipirismo globalizou-se.
Carlos Ganzirolli, estudioso da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) nas questões agrárias, atesta que 53,7% dos agricultores familiares no Brasil se vinculam fortemente ao mercado, mantendo elevada renda média. Cerca de 40% do valor bruto da produção familiar no campo se origina nesse segmento, formado por 1,4 milhão de pequenos e médios agricultores. A nova classe média rural, que investiu no conhecimento, prova que inexiste oposição entre ser familiar e participar dos agronegócios.
Operadores de máquinas, técnicos agrícolas, prestadores de serviços, vendedores de produtos, variadas categorias sociais surgiram e cresceram pelo interior afora. Vá conferir o dinamismo em Rondonópolis (MT), Rio Verde (GO), Balsas (MA), Barreiras (BA), Linhares (ES), Dourados (MS), Concórdia (SC), Cascavel (PR), Palmas (TO). Quando o campo se aquece, esquenta junto a cidade.
Há, ainda, muita pobreza no campo, particularmente no bolsão do semiárido nordestino. Mas desde 1993, quando chegou a aposentadoria integral para os trabalhadores da roça, essa situação começou a mudar. Vigorosas políticas públicas aliaram-se aos estímulos da economia para vencer a miséria rural. Em 1995 começou a operar o bem-sucedido Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf). Logo depois vieram as transferências de renda, hoje Bolsa-Família. Aumentou a escolaridade, os salários subiram. Após 15 anos, operando com a economia estabilizada, é visível, alhures, a ascensão social dos mais pobres.
FHC, ao escrever recentemente sobre a classe média e a política, resvalou num ponto essencial da moderna democracia: o fim do clientelismo. As categorias sociais que começam a vigorar no campo, como as da cidade, rompem antigos laços de dominação que lhes roubavam o livre-arbítrio e, no fundo, perpetuavam sua desgraça.
Isto é o que de mais extraordinário ocorre hoje no campo brasileiro: o progresso material está puxando a emancipação das pessoas. Contra a manipulação política se impõe a dignidade humana.