Por José Serra
Na guerra sem quartel contra as vacinas, o Executivo Federal já foi derrotado pela opinião pública, apoiada nos governos estaduais e nas prefeituras. Refugiar-se na retaguarda e manter escaramuças nessa área foi o que restou ao Planalto, a seus prepostos no Ministério e ao grupo residual de empresários e profissionais politizados da área de saúde. Cerca de 70% dos brasileiros concluíram o ciclo completo de imunização contra a covid-19, e pouco menos de 20% receberam a dose de reforço. Já não há como privá-los da proteção imunológica a que têm direito.
Não há mais tempo a se perder com controvérsias sobre remédios, manobras para retardar a entrega das vacinas e dos testes, perseguição a técnicos e servidores que seguem a ciência, difusão de acusações forjadas sobre efeitos colaterais inexistentes nas crianças vacinadas, ou propaganda sobre remédios milagrosos. A seu tempo, o peso da lei recairá sobre o conteúdo criminoso, hoje sob investigação no Ministério Público, em decorrência das apurações da CPI do Senado sobre condutas que têm contribuído para prejudicar o combate à covid-19.
Ainda temos enormes efeitos malignos da pandemia a enfrentar, como fome, desemprego, risco de colapso do atendimento hospitalar e ambulatorial – e não apenas no atendimento da covid, mas no sistema de saúde como um todo -, perdas relevantes no processo de aprendizado das crianças e dos jovens, disfunções graves na estrutura familiar, novos surtos de violência.
Estamos vivendo num período de pós-guerra, que exige um esforço imediato de reconstrução, mas propicia uma oportunidade para enfrentar novos desafios sanitários, sociais, políticos e econômicos.
Caberia ao governo tomar de imediato a iniciativa de assistir e promover econômica e socialmente a população mais vulnerável, mas não pode prescindir do envolvimento dos próprios assistidos na avaliação e execução dessas ações, nem dos recursos técnicos e financeiros da sociedade civil. O papel do Estado é de liderança, não de ativismo unilateral.
Um programa de socorro imediato às famílias precisaria ser planejado antes da posse do próximo governo. Hoje, o Executivo dispõe de instrumentos confiáveis para implementar um programa permanente e eficiente de transferência universal de renda. Será preciso alargar o escopo do Bolsa Família para transformá-lo em um benefício infantil universal.
A transferência de renda é indispensável, mas precisa ser complementada por ações permanentes de maior fôlego, com o objetivo de recompor o tecido social deteriorado da população. É preciso dar suporte às famílias, para restabelecer a escolaridade normal de seus filhos. Isto implica a formação acelerada de novos profissionais de ensino e sua reciclagem, com base em estudos e experiências em situações críticas similares em outros países, a serem desde já incorporadas às candidaturas.
Revigorar e reconstruir as escolas das periferias deve ser outra ação prioritária, contribuindo, com isso, para liberar espaços hoje dominados pelo crime organizado e por milícias. Suplementação escolar, assistência psicológica aos alunos, professores e funcionários e às famílias, aperfeiçoamento de canais de acesso aos serviços comunitários de saúde, e mesmo de segurança, devem constar desse programa amplo de combate às sequelas da pandemia.
O fraco desempenho da economia e a crise da pandemia, deprimiram fortemente o mercado de trabalho, levando dezenas de milhões de trabalhadores formais e informais à desocupação. Muitas soluções têm sido tentadas ou sugeridas, como redução de encargos, incentivos para contratação, simplificação da legislação trabalhista, criação de empregos públicos emergenciais, etc. Nenhuma produzirá soluções mais sustentáveis e duradouras, sem um redirecionamento de nosso sistema de ensino.
Os efeitos devastadores da pandemia sobre o sistema de ensino e as inovações tecnológicas estão redesenhando contornos ocupacionais e sistemas produtivos com efeitos significativos sobre as atividades da produção e as relações de trabalho. Até ontem, predominaram no emprego formal relações de trabalho estáveis, contínuas e previsíveis, hoje superadas por uma dinâmica muito diversa, com relações efêmeras, instáveis e mutantes.
Para sobreviver no mercado de trabalho pós pandemia, o jovem precisará se dispor ao aprendizado contínuo, à movimentação permanente entre diferentes ocupações. Para isso, a escola também terá de aprender a reformular práticas e conteúdos continuamente e – mais importante – conectar-se diretamente com a esfera produtiva.
Este mundo desafiador para o trabalho e para a escola precisa ser encarado, no próximo governo, como uma oportunidade desafiadora para empresas, trabalhadores e sistema educacional. Escolas, sindicatos e empresas podem e devem compartilhar objetivos convergentes, caso se disponham a cooperar na criação de um sistema educacional voltado para formar cidadãos – a função principal da escola – e prepará-los para o mercado. A experiência dessa ação conjunta certamente criaria condições para se refazer a conexão entre ensino e trabalho.