Pouco tempo depois de promulgada a Constituição de 1988, que se desenhou num ambiente francamente favorável ao parlamentarismo e acabou, por vicissitudes várias, presidencialista, teve início o debate da reforma política.
Eu mesmo, na liderança do PSDB na Câmara Federal, contribuí para dar impulso ao assunto.
Volta e meia, com mais ênfase nos meses que se seguem à eleição presidencial, o tema ganha o noticiário, e, então, prometem as lideranças dos mais diversos partidos: “Agora vai; faremos a reforma.” E a promessa acaba sempre desmoralizada pelos fatos.
Trata-se de uma tarefa bem mais complexa do que parece, e a situação se mostra ideal para o exercício da facilidade na dificuldade – ou, como queria o jornalista americano H. L. Mencken, apresentam-se soluções simples e erradas para problemas complexos.
Desde logo, devemos nos perguntar: “Reforma política para quê?”
Ou bem estabelecemos o seu objetivo, ou a proposta se perde numa espécie de fetichismo da mudança:
“Temos de mudar porque temos de mudar.” Esse certamente é um mau caminho.
Entendo que uma reforma política deva atender a três demandas principais, que concorrem para o aprimoramento da democracia:
1) é preciso tornar as eleições mais baratas;
2) é preciso fortalecer os partidos políticos;
3) é preciso aproximar o eleitor do eleito, reforçando a representatividade. Infelizmente, o chamado sistema proporcional, que temos hoje, eleva o custo da disputa a níveis estratosféricos, permite que aventuras personalistas se sobreponham à identidade partidária e obstaculiza a necessária proximidade entre representante e representado.
Estou, pois, entre os que consideram que a mudança é necessária, mas, como se nota, ela há de ter propósitos muito definidos.
Entre as propostas em exame, a pior de todas é o chamado “distritão”: os estados seriam considerados grandes distritos em que se elegeriam os parlamentares com mais votos, sem levar em consideração o quociente eleitoral obtido pelos partidos. Ora, essa alternativa concentraria todos os vícios do modelo que temos hoje, eliminando a sua única virtude:
– O custo das eleições aumentaria ainda mais, pois o candidato continuaria a disputar votos numa base territorial imensa e não contaria com os votos da sua legenda;
– Haveria uma espécie de “celebrização” do processo político; mais do que hoje, pessoas sem qualquer vivência partidária poderiam usar a sua popularidade como trampolim para a política;
– Os votos seriam dos candidatos, não dos partidos, enfraquecendo, pois, as legendas;
– O divórcio entre representante e representado, a que assistimos hoje, se manteria inalterado;
– A maior virtude do sistema proporcional, que distribui as cadeiras segundo o peso de cada partido, se perderia.
O distritão, pois, significaria, na verdade uma contrarreforma eleitoral; em vez de o sistema político progredir, ele regrediria. Trata-se de uma proposta reacionária, que faz a democracia andar para trás. E é preciso avançar. Mas como?
Se a reforma política pecou até agora pela inação, não será a precipitação a melhor conselheira. Podemos fazer desse debate e do processo de mudança um instrumento de educação política.
Estou convicto, e há exemplos mundo afora que endossam essa percepção, de que o voto distrital realizaria todos os propósitos virtuosos de uma reforma.
Com ele, saberíamos, então, por que mudar, com que propósito: os parlamentares disputariam votos numa base territorial definida, bem menor do que aquela do atual sistema, e isso baratearia a eleição; os candidatos de cada distrito seriam definidos pelos partidos, o que concorreria para fortalecer as legendas; os eleitores de cada distrito eleitoral saberiam o nome do “seu” parlamentar, mantendo com ele uma proximidade hoje inexistente.
Não quero eu também ficar aqui a oferecer facilidades para problemas difíceis. Sei que a introdução do voto distrital significaria uma mudança de cultura política que não se faz da noite para o dia, daí, então, o sentido desta proposta, que apela ao processo de educação política.
Haverá eleições municipais no ano que vem.
Temos a chance de introduzir o voto distrital para a escolha de vereadores nos 80 municípios brasileiros com mais de 200 mil eleitores. Essas cidades somam hoje, aproximadamente, 47 milhões de eleitores – algo em torno de 38% do eleitorado brasileiro. Seriam verdadeiros agentes de uma nova política.
Essas cidades seriam divididas em distritos; os partidos apresentariam seus candidatos a vereador; naquela área restrita em que buscarão votos, travarão uma espécie de minidisputa majoritária, estreitando os laços entre representante e representado. Distritos eleitorais seriam definidos levando-se em conta, claro, o peso do eleitorado.
Não se trata de uma mudança fácil, mas de uma mudança correta, que tem o claro propósito de aprimorar a representação e o processo democrático. Na eleição municipal de 2012 seria introduzida uma espécie de vírus benigno, que levaria a uma transformação virtuosa do processo eleitoral nos estados e na Federação, em pleitos futuros. A reforma eleitoral ganharia, assim, a característica de um processo de educação política, até se realizar com a plena consolidação do voto distrital no Brasil.
Não precisamos mudar por mudar.
A reforma política, se vier, há de atender aos primados da democracia, não às conveniências dessas ou daquelas forças políticas circunstancialmente majoritárias. Afinal, queremos um país que, em vez de referendar os erros do passado, responda às demandas do futuro.
José Serra
Foi deputado federal, senador, prefeito e governador do Estado de São Paulo, pelo PSDB