Ney Vilela*
Maomé, ao construir o Estado muçulmano, não se preocupou em organizar uma sólida estrutura administrativa.
Ele considerava mais conveniente manter sua posição de árbitro supremo, impedindo que qualquer espécie de aparato burocrático adquirisse real poder de comando.
Para cimentar alianças políticas com as tribos que povoavam a Península Arábica, Maomé utilizou-se do prosaico procedimento de se casar com muitas das filhas dos líderes tribais.
Maomé evitou a construção de um exército permanente, preferindo recrutar crentes que se ofereciam voluntariamente para lutar sob a bandeira de Allah.
As obras públicas eram financiadas por doações voluntárias e pelos impostos cobrados das tribos submetidas ao Estado muçulmano que estava se formando.
Talvez o Estado que Maomé construiu fosse o mais eficiente para aquele momento: as tribos de camponeses e de pastores nômades provavelmente não se curvariam a um poder burocrático, que tentasse construir uma forte estrutura arrecadatória, mas respeitavam o poder espiritual emanado pelo Profeta.
Podemos afirmar que Maomé conseguiu concluir, em vida, a tarefa de unificar a Arábia. Sua morte, em 06 de junho de 632, foi pranteada por tuaregues, pastores, comerciantes caravaneiros e por camponeses que viviam à beira dos oásis.
O grande problema consistia no fato de que a idéia de Estado centralizado não constituía parte da cultura árabe. E como Maomé não fez qualquer esforço para alterar esta situação, várias tribos, poucas semanas após o falecimento do profeta, voltariam a lutar entre si, como faziam há muitos séculos.
Os muçulmanos, como outros povos, precisam de governo, arrecadação de impostos e de fazer a guerra. Mais do que outros povos, envolvem a religião em todas essas atividades. Para o Profeta e seus companheiros, a opção entre Deus e César, não existe. Nos ensinamentos e na experiência muçulmana, não há César.
Deus é o chefe de Estado e Maomé, seu Profeta, ensinava e governava em seu nome. Como Profeta, Maomé não teve nem podia ter sucessores. Mas como soberano supremo da comunidade político-religiosa do islã, foi sucedido por uma linhagem de califas.
Os ocidentais erram quando supõem que o califa era o chefe de Estado e da Igreja, um mix de Papa e César. O califa exerce um cargo religioso, com a finalidade de defender a herança do profeta e fazer com que se cumpra a Lei Santa.
Mas não tem funções pontificiais ou sacerdotais: não expõe nem interpreta a fé; deve mantê-la e defendê-la. O califa é um imã, ou seja, líder em oração, comandante dos fiéis. Nunca se definiu exatamente como seria escolhido um califa e quais seriam os seus eleitores.
Dois versículos do Corão (3:153 e 42:36) impõem ao governante o dever da consulta. Mas não se especifica quem deve ser consultado: os sacerdotes (ulemás) insistem na necessidade de consulta aos… ulemás! Já os chefes tribais consideram fundamental que se consultem os… chefes tribais. As imprecisões em relação ao processo de escolha do califa e de como são constituídos os conselhos que os assessoram levaram ao enfraquecimento do califado e ao fortalecimento dos comandantes militares, os emires.
Com a expansão do mundo muçulmano e a multiplicação de suas províncias, surgiu a necessidade de instituir uma autoridade imperial que se associou à do califa, usurpando-lhe o poder em assuntos políticos e militares: trata-se do sultanato. Sultão, em árabe, é um substantivo abstrato, significando autoridade e mando.
Em uma sociedade onde Estado e governante são sinônimos, o termo sultão passou a ser aplicado não só à função de autoridade política, mas àquele que a exercia, sendo aplicado informalmente a respeito de ministros e governadores.
Tal como o califado, o sultanato acabou único e universal. Da mesma forma que só havia um califa para servir como cabeça religiosa do islã, só poderia haver um sultão responsável pela ordem, segurança e governo do império islâmico.
O sultão acabaria escolhendo e nomeando ele mesmo o califa e, em seguida, lhe juraria lealdade. Assim, o califa representa a autoridade; o sultão é o poder. O sultão dá poder ao califa que, em troca, legitima o sultão. O califa reina, mas não governa; o sultão faz as duas coisas.
O mundo muçulmano continuava a crescer. A complexidade relacionada ao comando administrativo de inúmeras províncias fez com que a máquina burocrática se ampliasse. O sultão precisou entregar a direção da burocracia ao vizir (palavra que significa aquele a quem se confiou uma carga ou dever).
Os vizires costumavam proceder da classe dos escribas e faziam carreira na hierarquia burocrática. Como os sultões eram homens de espada, não raro analfabetos, os vizires conduziam os negócios do governo, tomando decisões em assuntos civis, militares e até judiciários.
Não há, em conclusão, critérios específicos para a escolha dos califas, emires, sultões ou vizires: as influências dos ulemás, dos chefes tribais, dos estamentos burocráticos mais elevados, dos líderes guerreiros variam com as circunstâncias, regiões ou épocas.
E estas influências utilizam mecanismos variados para se fazerem sentir: assembleias de notáveis; força das armas; manipulação de versículos do Corão; acordos intertribais.
Hoje, no Afeganistão, as escolhas reais são feitas pelos senhores da guerra (que permitirão, ou não, que prevaleçam as manipulações eleitorais de Hamid Karzai); no Irã, o Conselho da Revolução decide quem é o Primeiro Ministro; na Palestina, os chefes religiosos do Hamas possuem um curral eleitoral que é quase metade do eleitorado do país.
Na maior parte dos países muçulmanos, os rituais eleitorais ocidentais são adereços dispensáveis, independentemente de nossos desejos e ansiedades em relação a esta questão. Talvez seja melhor que o Ocidente reconheça, humildemente, que os procedimentos para a escolha dos governos derivam da evolução histórica de cada sociedade: não podem ser impostos nem tutelados.
* Professor de História Contemporânea da USC e Coordenador Regional do Institu
to Teotônio Vilela