Por José Serra
“Em 1898, em Würzburg, na Alemanha, um estudante de medicina chamado Hermann Rothmann defendeu a tese de que o cigarro – o pó da fabricação do cigarro, acreditava ele – era o responsável pelo crescimento exponencial do câncer de pulmão.” Até então esses tumores eram considerados uma doença rara, tão rara a ponto de os professores de medicina da época alertarem seus alunos de que era incomum um médico se deparar com mais de um caso em toda a sua carreira. Esse e os sucessivos eventos que levaram à comprovação científica da relação entre o cigarro e o câncer de pulmão, além de outras graves doenças, são narrados com rigor científico – e prosa elegante – em artigo do professor Robert Proctor, da Universidade Stanford, publicado em 2012.
Nas décadas subsequentes o consumo de cigarros cresceu exponencialmente. De fato, poucas vezes na história da medicina foi possível estabelecer estatisticamente, com tanta confiança, uma relação causal de longo prazo entre um hábito e uma doença.
Mesmo diante de crescentes e inegáveis evidências dos males do cigarro, a indústria do fumo foi hábil o suficiente para escamotear, com sucesso, os efeitos danosos do tabaco. Ainda segundo o dr. Proctor, a indústria contestou as evidências e organizou forte contrapropaganda. Ainda em 1960, observa ele, apenas um terço dos médicos dos Estados Unidos acreditavam haver elementos suficientes para provar que o cigarro provocasse danos graves à saúde.
Já observei em outras oportunidades que o objetivo central da propaganda de cigarros é torná-los atraentes, estabelecendo um padrão de comportamento rebelde, independente ou viril, a despeito da repulsa fisiológica causada pelo fumo naqueles que adquiriram o hábito. Só a comprovada dependência produzida pela nicotina torna o fumante capaz de se defrontar continuamente com a fumaça nauseante do cigarro.
Um dos expedientes mais agressivos, do ponto de vista mercadológico, usados recentemente pela indústria do fumo para atrair adolescentes é adicionar sabores e aromas aos cigarros. Menta, cravo, canela, chocolate – todos os sabores aprendidos na infância – são agora oferecidos aos adolescentes no tabaco. Numa vertente mais “descolada” e multicultural, percebe-se a expansão do narguilé, um aparato para consumo coletivo de tabaco, em que cheiros e sabores exóticos se misturam a um difuso orientalismo, receita sedutora para fisgar novos consumidores.
Essas estratégias guardam relação com a já derrotada tentativa de convencer o público de que haveria cigarros inofensivos: os de “baixos teores”. Nos anos 1980 e 1990, investiu-se pesado na falsa ideia de que esses cigarros não causariam dano. A verdade científica é que não há níveis seguros para o consumo de cigarros.
A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), em 2012, após criar um grupo de estudo sobre os efeitos dos aditivos de cigarros e promover amplo debate público, aprovou a Resolução n.º 14 (RDC 14/12), que proíbe a produção e a importação de produtos de tabaco com aditivos. A Confederação Nacional da Indústria (CNI) questionou a competência da Anvisa para expedir diretivas e regulamentar o uso de substâncias potencialmente nocivas e obteve a suspensão da vedação do uso de aditivos nos cigarros, mas, ainda neste ano, provavelmente, haverá decisão do pleno do Supremo Tribunal sobre o assunto.
Sou favorável à RDC 14/12 – até porque não acredito que se possa questionar a independência técnica e a competência científica da Anvisa. Aliás, tem havido preocupantes iniciativas para reduzir a autonomia técnica dessa agência.
Uma dessas interferências, no caso do Congresso, foi a anulação da proibição de remédios para emagrecimento com base em anfetaminas. Mais recentemente, a agência foi pressionada a liberar o uso da substância fosfoetanolamina, que alguns setores acreditavam, sem nenhuma evidência científica, ter utilidade no tratamento do câncer. Em 31 de março, o Instituto do Câncer do Estado de São Paulo (Icesp) decidiu não incluir novos pacientes nos testes de eficácia da droga, uma vez que, nas etapas anteriores, a substância não trouxera nenhuma resposta positiva para os doentes.
Quando, na minha gestão no Ministério da Saúde, decidi criar a Anvisa – um passo essencial para a introdução dos genéricos no Brasil –, entendia que uma agência tecnicamente capacitada e funcionalmente independente seria indispensável para proteger a saúde dos brasileiros. Temo que interferências possam solapar sua autoridade técnica e prejudicar o controle sanitário no Brasil.
A nossa agência é reconhecida mundialmente por seu rigor e sua competência, o que garante a tranquilidade de médicos e pacientes quanto à qualidade e à segurança dos genéricos brasileiros. Aliás, essa credibilidade é um dos fatores responsáveis pelo acelerado crescimento da indústria farmacêutica nacional. Uma indústria que incorpora novas tecnologias, oferece empregos de qualidade e dinamiza a economia, por seu alto valor agregado.
Na luta contra o tabagismo, entendo que não basta apoiar a RDC 14/12, da Anvisa. Em 2015 propus o Projeto de Lei do Senado (PLS) 769, que, além de vedar a fabricação de cigarros com aditivos, proíbe integralmente a propaganda de tabaco nos pontos de venda, padroniza a embalagem de todas as marcas de cigarros e, finalmente, prevê punição para o condutor que fume ou permita que se fume em veículo que transporte crianças ou adolescentes.
Espero que ainda em 2017, em Brasília, prevaleça a fumaça do bom Direito (fumus boni iuris) e que o Supremo Tribunal reponha em vigor a RDC 14/12, como prolongamento da longa jornada contra as doenças provocadas pelo cigarro, iniciada pelo estudante Hermann Rothmann, em Würzburg, no ano de 1898.
*Senador (PSDB-SP)