Por José Serra
Polêmicas envolvendo o Orçamento da União mostram que o longo processo de construção institucional relativo à matéria, iniciado com a Constituição de 1988, requer cuidados. Na condição de parlamentar dedicado ao tema desde a Constituinte, gostaria de desfazer certa confusão provocada por discursos recentes que vão em direção equivocada: o Poder Executivo abriria mão de seu protagonismo no processo orçamentário, seja por fraqueza política, seja por estratégia de poder.
O Orçamento público é o principal instrumento pelo qual a sociedade, mediante seus representantes no Legislativo e no Executivo, decide como serão usados os recursos arrecadados pelo Estado. No jargão econômico, essa é a função alocativa do Orçamento. Tantas são as aplicações possíveis dos recursos públicos quantos são os problemas e oportunidades afetos a uma sociedade. Investiremos em rodovias ou em escolas? Permitiremos aposentadorias mais precoces ou financiaremos mais pesquisa? A preservação do meio ambiente merecerá mais recursos que atividades culturais? Valendo-me de exemplo atual e relevantíssimo: adiaremos o Censo Demográfico para gastarmos com obras locais?
Aos múltiplos usos potenciais dos recursos públicos acrescente-se a pluralidade de preferências: cada cidadão escolheria, se pudesse, um conjunto próprio de prioridades tendo em vista a escassez de recursos. Dado que, infelizmente, não podemos obter tudo, escolhas nos são impostas. Note-se, ainda, que elas abrangem não apenas alternativas de gastos, mas a distribuição dos seus custos entre grupos e gerações. Se nos endividamos hoje para executar certa despesa, nossos filhos e netos pagarão a conta.
Na esfera pública, certos agentes, sobretudo políticos, fazem escolhas em nome dos eleitores. Receitas arrecadadas de toda a sociedade podem ser destinadas a grupos específicos. Essas observações levantam desafios por toda parte. Como garantir que as decisões dos representantes estejam alinhadas com os interesses dos representados? Como evitar que a busca por benefícios no Orçamento provoque o crescimento desenfreado do gasto e do endividamento?
Assim é que o processo orçamentário entra em cena para, idealmente, otimizar escolhas. Em cada sociedade, elas serão moduladas pelas instituições orçamentárias, conjunto de regras e princípios que orientam os gastos governamentais. As peças orçamentárias, por sua vez, inserem-se no ambiente institucional mais amplo, abrangendo os sistemas político, eleitoral e partidário.
A Constituição de 88 restabeleceu prerrogativas do Legislativo no campo orçamentário, em contraponto à ordem jurídica anterior, na qual o Executivo detinha papel muito preponderante. Ao reequilibrar funções, contudo, o texto constitucional não eximiu o Executivo de responsabilidades: liderado pelo presidente da República, cabe a ele elaborar e encaminhar os projetos de leis orçamentárias ao Congresso Nacional, o qual, por seu turno, poderá promover remanejamentos, de acordo com dispositivos constitucionais, legais e regimentais. Ao final, o Executivo poderá opor vetos às alterações promovidas, sujeitos à maioria qualificada para serem derrubados.
A prerrogativa, atribuída ao Executivo, de apresentar a versão inicial do Orçamento é motivada por razões teóricas e especificidades nacionais. Como aponta a literatura, alguma forma de centralização decisória é condição necessária para que os recursos públicos não sejam objeto de uma disputa disfuncional. Grupos de interesse almejam apropriar-se do maior volume possível de recursos, pela expectativa de que o ônus tributário ou os encargos da dívida incidam sobre si em menor proporção. Submetidos a eles, os orçamentos públicos tendem a déficits recorrentes.
No que tange ao caso brasileiro, a heterogeneidade de interesses num país continental, combinada com fragmentação partidária, federalismo e certas regras eleitorais, faz as decisões orçamentárias do Legislativo tenderem à satisfação de demandas locais. Preocupações com o equilíbrio fiscal e a qualidade do gasto dificilmente orientam o cálculo parlamentar na esfera orçamentária. A consequência é o crescimento permanente do gasto, ao largo de análises de custo-benefício.
Nesse contexto, a falta de liderança do Executivo no decorrer do processo orçamentário traz riscos não desprezíveis. Prioridades mais amplas e projetos de caráter estratégico podem ser negligenciados. O interesse geral facilmente se perde em meio a pressões paroquiais. Iniciativas locais, próprias dos orçamentos subnacionais, avançam sobre o Orçamento federal dissociadas de programas mais abrangentes que lhes deem alguma organicidade.
Não é coincidência, portanto, que a reforma das instituições orçamentárias ganhe espaço na agenda política. Nesse sentido, as lideranças políticas no País devem dar prioridade à revisão do sistema de planejamento e orçamento previsto na Constituição no sentido de reequilibrar as responsabilidades entre os Poderes, com o objetivo de consagrar o princípio da responsabilidade orçamentária no País.