Por José Serra
No final do ano passado o governo federal apresentou ao Senado a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) n.º 188, cujo propósito é estabelecer novas regras para controlar as despesas do orçamento federal. Mais uma! Será a 12.ª regra fiscal dos últimos anos, num país que não consegue pagar as despesas do dia a dia com os tributos arrecadados. E a nova proposta traz um detalhe perigoso: compromete a estrutura do teto de gastos, até agora uma presumida âncora da política fiscal.
O propósito da PEC 188 é nobre: integrar o pacote econômico endossado pelo Poder Executivo a fim de pôr em ordem as contas públicas. No entanto, dada a falta de consistência, a proposta pode acabar virando uma sopa de pedras. As possibilidades levantadas pela equipe econômica, contraditórias e desarmonizadas, se assemelham a pedrinhas lançadas no caldeirão do sistema de regras que deveriam nortear o nosso processo orçamentário. O gosto é insosso.
Para além de uma distribuição de recursos dos royalties do petróleo mais vantajosa para Estados e municípios, propõe-se uma nova regra de ajuste fiscal no artigo 109 da PEC 188: toda vez que um órgão da administração pública federal gastar mais do que 95% do seu orçamento com despesas tidas como obrigatórias, ficará sujeito a restrições fiscais como proibição de contratar funcionários públicos e de criar novas despesas obrigatórias.
Esse controle do crescimento do gasto obrigatório é estranho. O conceito de despesa obrigatória é um dos mais imprecisos do nosso arcabouço jurídico. Além disso, a matemática rústica que envolve a métrica incentiva o aumento dos gastos e a rigidez orçamentária. Quanto maior for o orçamento total do órgão, maior será o espaço fiscal para se criarem gastos obrigatórios.
Mas o principal problema da PEC é a alteração que propõe na estrutura do teto de gastos, aprovado em 2016 para impedir o crescimento das despesas acima da taxa anual de inflação. Sabe-se que desde 2014 o orçamento federal tem registrado resultados negativos. Ou seja, os tributos e taxas arrecadados pela União não estão sendo suficientes para bancar as despesas da máquina pública. Para combater esse déficit orçamentário o Congresso aprovou a Emenda Constitucional n.º 95, estabelecendo um limite de crescimento para os gastos públicos. Teria sido melhor aprovar naquele momento um limite para a dívida pública federal, por ser a regra fiscal mais efetiva e adotada nas democracias avançadas.
As boas práticas internacionais ensinam que a não observância de regras fiscais deve acarretar sanções. Estas podem ser monetárias, como proibição de se criar novas despesas, ou administrativas, como multas ou tipificação criminal dos responsáveis por atos que violam as regras. A Emenda 95, corretamente, foi aprovada estabelecendo sanções monetárias a serem aplicadas quando o teto é descumprido, sem partir para a criminalização da política fiscal.
A PEC 188 rompe com essa ideia. Se aprovada como pretende a equipe econômica, o presidente da República passa a cometer crime quando a despesa pública crescer a uma taxa superior à inflação. Esse tipo de sanção, vale dizer, também pode derrubar chefes dos Poderes Judiciário ou Legislativo que estejam gerindo despesas inercialmente crescentes por causa de administrações anteriores imprudentes do ponto de vista fiscal. Na prática, o risco de se criminalizar a política fiscal é o início do fim do teto de gastos.
Mal desenhadas, as regras fiscais não são cumpridas nos países que mais precisam delas. É curioso perceber que no Brasil a elevação do endividamento público acompanha um mosaico de leis para controle de gastos. Pesquisas do economista francês Charles Wyplosz mostram que o mesmo fenômeno se verifica em diversos países europeus – Espanha, França, Grécia e Itália –, onde a dívida pública cresce persistentemente ainda que esteja em vigor, na zona do euro, um amplo leque de regras fiscais.
Nota-se também que no Brasil a elevada fragmentação partidária promove um processo orçamentário caótico. O grande número de atores com poder de influência acaba beneficiando grupos de interesse específicos, que no mais das vezes prevalecem em detrimento dos direitos dos demais contribuintes. Nesse contexto, não podemos criar regras constitucionais de curto alcance.
O Senado deve ter presente que vai assumir a grande responsabilidade de analisar as propostas apresentadas pelo governo para pôr em ordem as contas públicas. Se queremos ingressar na Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), devemos apostar no que deu certo por lá: limitar o montante da dívida pública e institucionalizar processos de revisão periódica de gastos (spending reviews) – que está pronto para ser votado na Câmara dos Deputados há mais de um ano e estranhamente não foi considerado prioritário pelo atual governo. Essas medidas tornariam o teto de gastos mais efetivo no longo prazo e garantiriam o ajuste fiscal sem comprometer investimentos sociais em saúde e educação. Não precisamos ingerir sopas de pedras na forma de novas regras heterodoxas para controlar o crescimento do gasto obrigatório ou para criminalizar a política fiscal.