POR AÉCIO NEVES
Em razão do Dia da Consciência Negra, abro hoje a coluna para a desembargadora baiana Luislinda Valois, uma aguerrida brasileira na luta pela igualdade racial:
“A mulher preta brasileira é uma criatura eminentemente resiliente. Eu sou.
É uma mulher apequenada pelo desemprego, pela falta de moradia, pela fome que assola o seu habitat. Que mesmo tendo frequentado escola e universidade, e de lá saído graduada para uma profissão, não é outra mulher. É a mulher preta que sofre o assedio moral, a violência e a discriminação na sala de aula, no médico, no metrô, no escritório.
É também a pessoa mais traficada para lugares distantes do Brasil. É a mulher preta brasileira que lota as cadeias femininas e é a que mais morre assassinada. Os homicídios de mulheres brancas caíram 9,8% – de 1.747 em 2003 para 1.576 em 2013. Os homicídios de mulheres negras aumentaram 54,2% nesse período, de 1.864 para 2.875.
Socorro! É o grito da mulher preta desassistida e é também o grito da mulher preta que lutou, concluiu seus estudos, formou seus filhos, mas ainda não os vê nas esferas das decisões, nos cargos da diretoria, nas rodas empresariais ou nas salas com ar condicionado dos Três Poderes da República. Eles não chegam lá. E por quê?
De acordo com o IBGE, um negro no Brasil ganha 57,4% do que ganha um branco na mesma função. O único setor em que o negro ultrapassa o não-negro na renda é o trabalho doméstico, em 1,5%.
Em 1978, vi-me aprovada em primeiro lugar no concurso para cargo de procuradora autárquica federal. Depois fui aprovada no concurso para juíza. Tornei-me a primeira juíza preta brasileira. Um luxo? Um sucesso? Não, uma exceção.
Sou mulher, preta, candomblecista, ousada, independente e competente em meu ofício. Rasguei a tradição e fui em busca do meu desiderato e do meu direito de cidadã preta livre brasileira. Cheguei onde queria sendo filha de uma lavadeira e de um motorneiro de bonde. Desobedeci às premonições do meu professor.
Empreitei medidas judicias junto ao CNJ e fui unanimemente agraciada com reconhecimento do meu direito de assumir como desembargadora no Estado da Bahia. Foi uma luta desigual, mas trouxe o meu direito constitucional para o meu viver. Recebi comendas importantes nacionais e internacionais, viajo o mundo para palestras, sou embaixadora da paz pela ONU.
Mas as chibatadas e a senzala sempre me rondam e sondam porque sou também a mulher preta que chora o filho que não voltou. Que perdeu outro filho para o tráfico, para a polícia. Uma mulher que conhece a grande dor da impunidade, a que ninguém escuta.
Venceremos tudo isso um dia. É preciso esperança, não para aguardar. Esperança no agir.”