O grande artista é aquele que sabe expressar aquilo que está dentro de nós e que, muitas vezes, nem sabemos nomear. Na literatura, na pintura, nas artes cênicas ou na música, a verdadeira arte dialoga, simultaneamente, com o seu tempo e com cada indivíduo. Ela pertence a todos, sem jamais deixar de ser um patrimônio único de cada pessoa.
É neste sentido que se projeta a obra de Bob Dylan. De um lado, a capacidade de traduzir para o coletivo o impacto e as incertezas de tempos de mudança. De outro, a conexão com os sentimentos mais íntimos de homens e mulheres do mundo todo. E tudo isso em forma de canções e letras inesquecíveis.
A dimensão da obra pode ser medida pela intensidade da repercussão do Prêmio Nobel. De alguma forma, toda uma geração se sentiu reconhecida em um inequívoco testemunho de como as músicas do poeta ultrapassaram fronteiras e vocalizaram, com precisão, as angústias de milhões, especialmente jovens, em diferentes países.
O prêmio dado a Bob Dylan revigora o debate sobre a importância das palavras na vida contemporânea. A trajetória do artista é conhecida. O fato é que sua carreira, especialmente no início, simboliza muito do que os anos 60 e 70 impuseram como pauta às sociedades mais progressistas: uma luta ferrenha a favor dos movimentos civis, dos direitos humanos, do feminismo, do ativismo negro, da paz.
Trata-se de uma agenda que não envelheceu, ao contrário, mostra-se cada vez mais atual e necessária. Neste planeta conturbado por guerras civis, intolerância, violência contra povos, raças e gêneros, imerso em contradições e desigualdades, a luta contra toda e qualquer forma de injustiça precisa ser intensa, permanente.
Hoje, muito do que foi conquistado em termos de democracia e civilização se vê em risco com a propagação de ideários pouco afeitos ao contraditório, ao debate de ideias. Em época de radicalismo e ceticismo, a cultura tem papel fundamental a cumprir. Mais arte, mais diversidade, mais pensamento crítico, mais compromisso com o que é de todos. Mais respeito às diferenças. Menos individualismo.
Em uma de suas canções mais conhecidas, Dylan pergunta: “quantas estradas um homem deve percorrer antes que possam chamá-lo de homem?”. O caminho do artista está exposto numa obra estupenda onde brilha uma densidade poética refinada e, ainda assim, popular. É sintomático que ele continue na ativa, aos 75 anos, fazendo shows, produzindo. As pedras que rolam não criam musgo, não ficam paradas no tempo. Elas movem o mundo.
Além do justo reconhecimento, o prêmio teve um outro significado: reacendeu em nós a memória afetiva daquilo que nos inspira e nos mobiliza. O Nobel está em boas mãos.