Por Fernando Henrique Cardoso
No meio de várias notícias ruins, há o que celebrar: o SUS, Sistema Único de Saúde, tem mostrado que funciona e pode atender a população brasileira. Eu era senador quando, na Assembleia Nacional Constituinte, um punhado de parlamentares que eram médicos se batia pela construção do dito SUS. Recordo-me especialmente do deputado Almir Gabriel, e ele não era o único. Mesmo que não se compreendesse inteiramente o alcance da medida, batemo-nos todos, mesmo os não médicos, que apoiamos os médicos. Os heróis foram os parlamentares-médicos, liderados por Sergio Arouca, presidente da Fiocruz e mentor da chamada frente sanitarista.
Mais tarde, graças a outros tantos funcionários competentes, o SUS foi se formando e hoje a população mais pobre, sobretudo, sabe da valia de tal instrumento. Com o SUS a saúde no Brasil mudou de patamar. Os mutirões nacionais de vacinação infantil se transformaram em dias de festa para milhões de mães de todo o País. O Brasil tomou gosto pela vacinação periódica. Caiu a mortalidade infantil, aumentou a expectativa de vida. Multiplicaram-se as equipes de médicos de família. Em São Paulo, a ação do dr. Adib Jatene foi significativa. E ele não foi o único no Brasil a compreender as dificuldades daquele momento. A ele e aos que foram ministros da Saúde de vários governos devemos o haver melhorado a situação sanitária do povo.
É nestas circunstâncias que enfrentamos hoje a mais recente e danosa epidemia. Acho que cabe, em momento tão difícil para as famílias afetadas, reconhecer que, não fossem o SUS e a dedicação de médicos, enfermeiros e demais operadores de saúde, lidaríamos com mais dificuldades ainda com a crise pela qual estamos passando. Cabe, pois, antes de mais nada, uma palavra de agradecimento. A imensa maioria da população brasileira entendeu a importância da vacina. Para tanto, foi fundamental o papel da mídia e da ciência para explicar em linguagem clara e acessível os benefícios e a segurança das vacinas. Países com infinitamente mais recursos, como Estados Unidos, Reino Unido e Alemanha, ainda não lograram vencer a resistência à vacina por parcelas significativas de sua população.
Dito isso, acredito que cada um de nós é responsável pelo modo como enfrentaremos a presente crise. Antes de mais nada é preciso, sem exageros, que reconheçamos sua extensão e gravidade. Nem todos podem ficar em casa e nem todos têm casas que permitem nelas tratarem-se, nem, tampouco, trabalhar. Isso, não obstante, cabe a cada um de nós tratar de nos preservar. Preservar, dentro do possível, não quer dizer não trabalhar, mas ter os cuidados possíveis, diante da diversidade de condições de cada um, para não se expor mais do que o necessário. E isso não são palavras vãs: quanto maior cuidado tivermos coletivamente, mais depressa atingiremos o objetivo comum, o da volta à normalidade.
Os mais velhos, como é meu caso, terão ouvido os pais falarem da “gripe espanhola”, que, depois da primeira Grande Guerra, atingiu também escala planetária e assustou meio mundo. Pois é algo dessa escala a que estamos assistindo agora. Com duas diferenças significativas: os modernos meios de transporte e o maior intercâmbio entre países aumentaram exponencialmente a mobilidade global; e os meios de comunicação atualmente atingem mais gente. E, sem que cada um se cuide, não há governo que nos possa salvar. Esta reflexão não vai no sentido de dizer: basta que cada qual cuide de si. Ao contrário: a ação dos governos é indispensável, sobretudo para chegar aos mais pobres e para fornecer-lhes assistência. Mas os meios de comunicação (internet, jornais, revistas, rádios e tevês) são também fundamentais para orientar as pessoas. Em suma, uma doença que atinge tanta gente precisa de uma reação coordenada de muitos atores sociais.
É cedo para dizer que vencemos. Um pouco de mais tempo será necessário para fazer um balanço objetivo da situação. Mas é preciso reconhecer que os meios disponíveis estão sendo usados. Não desanimemos e continuemos lutando para amanhã podermos dizer: desta escapamos! Por isso, mesmo, cabe ainda um apelo à coletividade: assim como o vírus alcança a todos, pobres e ricos, poderosos ou não, é preciso que todos estejamos envolvidos em combatê-lo. A função primordial dos governos não é somente a de dar meios aos que deles não dispõem. É, sobretudo, a de os alertar para o que pode e deve ser feito. E esta função não se dirige aos mais pobres apenas, mas a todos os cidadãos que habitam o País.
Por duro que seja passar por uma crise da natureza da que estamos sofrendo, talvez ela sirva de sinal de alerta para que o País sinta a falta que faz a uma comunidade dar-se conta do que seja pertencer a ela. Não basta encher a boca e dizer aos estrangeiros: somos tantas centenas de milhões. Precisamos assumir, também, nossos deveres de solidariedade e ver que dentre pessoas que habitam no País há muitos que mal têm o que comer. E que a saúde, se é dever do Estado cuidar dela, também concerne a cada um de nós. A nossa saúde e a de todos.