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Novas Cruzadas

Ney Vilela*

A Europa Ocidental tornou-se uma região relativamente tranquila, ao final do Primeiro Milênio: os normandos reduzem suas violentas incursões marítimas e fluviais; os hunos não mais fazem tropelias na Europa Centro Oriental; os árabes, enfrentando problemas políticos internos, não renovam seus ataques sobre a Europa Meridional.

Nessa situação calma, as populações europeias começam a crescer numericamente. Os camponeses multiplicam-se como coelhos e os excedentes populacionais não são ceifados pelas invasões bárbaras ou sarracenas. Surge aí um grande problema: as técnicas de produção e a maneira pela qual a mão de obra é usada no feudalismo não são muito eficientes. Nos feudos há mais servos do que comida para alimentá-los. Os servos considerados excessivos eram expulsos do feudo. Não raro, tornavam-se marginais. As péssimas estradas medievais, com isso, tornaram-se inseguras.

Os nobres também se multiplicavam. E como a herança era indivisível e vinculada ao direito de primogenitura, muitos jovens da nobreza viram-se sem terras. Para conseguir feudos (ou para mantê-los), os nobres se digladiavam. Por causa da ineficiência do sistema produtivo, a Europa vê-se próxima de uma grande crise social.

A Igreja era grande proprietária de terras e percebia que os problemas sociais poderiam lhe trazer enormes problemas econômicos. Havia outras dificuldades importantes que a Igreja precisava enfrentar: os árabes levantavam empecilhos aos cristãos que desejavam peregrinar à Jerusalém; a Igreja de Constantinopla separou-se, no Grande Cisma de 1054; os turcos pressionavam a velha Bizâncio, tentando dominá-la. Por fim, as pessoas daquela época eram muito religiosas e esperavam que a Igreja fizesse algo para acabar com tantos contratempos.

A solução foi o movimento das cruzadas. Os excedentes populacionais marginalizados, de todas as classes sociais, transformaram-se em mão-de-obra militar. As cruzadas poderiam ajudar na reunificação da cristandade, além de atender aos reclamos de todos os cristãos que queriam realizar suas peregrinações à Cidade Santa.

Infelizmente, para a Igreja e para os nobres, as cruzadas foram um fracasso: só uma delas, a primeira, chegou a Jerusalém, mas a conquista foi temporária; as demais, ou foram derrotadas, ou tornaram-se meras expedições de pilhagens.

As cruzadas fracassaram porque as invasões tinham caráter apenas militar, sem que os cruzados se preocupassem em vincular as populações das regiões conquistadas às raízes econômicas e culturais europeias. Os nobres cruzados muitas vezes lutavam entre si, com muito mais violência e disposição do que contra os árabes. Ocorria o mesmo entre comerciantes venezianos e genoveses, rivais no comércio das especiarias do oriente, e entre as ordens religiosas, capazes de atos de extrema truculência para provar que estavam ao lado de Deus.

Passaram-se séculos. O Ocidente transitou do feudalismo para o capitalismo. E o capitalismo, partindo de uma aurora onde o comércio era a atividade econômica fundamental, amadureceu, tornando-se industrializado. No século XX, as indústrias e meios de transporte tornaram-se dependentes do petróleo.

As reservas petrolíferas se concentram em três regiões: Golfo do México, Cáucaso e Golfo Pérsico. No período da Guerra Fria, uma das regiões estava sob claro domínio estadunidense (Golfo do México); outra estava sob domínio soviético (Cáucaso) e a terceira estava em disputa.

A lógica da Guerra Fria impelia os EUA a incentivar o aumento da produção de petróleo, barateando o seu preço no mercado internacional e impedindo que a URSS (que possuía jazidas magníficas, na região do Cáucaso) pudesse se capitalizar. Kuwait e Arábia Saudita são monarquias tradicionais lideradas por dinastias bilionárias, enriquecidas graças ao domínio e exploração de enormes jazidas de petróleo, governando populações miseráveis. Decidiram fazer o jogo dos estadunidenses.

Os regimes nacionalistas autoritários utilizavam o discurso da construção da unidade árabe contra o domínio econômico das superpotências para se legitimar. Embora as palavras parecessem ser de ataque à URSS (que, afinal, era uma superpotência…), o fato é que os soviéticos davam sustentação, política e econômica, aos governantes nacionalistas.

Em resumo, o que estava ocorrendo era um movimento de expansão do Ocidente (e do socialismo real) sobre o Oriente Médio. Da mesma forma que no período cruzadista, ninguém se preocupou em dialogar com as culturas do Oriente Médio: a ideia era, tão somente, anexar a região dentro dos parâmetros existenciais, econômicos, políticos e culturais dos EUA (ou da URSS).

Com o fim da URSS, a ação das potências ocidentais pode ser resumida em impor o sistema capitalista e garantir suprimentos de petróleo, sem sobressaltos políticos e riscos de paralisação da oferta (que deve ser comercializada a preços de mercado). Justifica-se a intervenção ocidental, no dia a dia das populações de maioria islâmica, com a premissa de que é ato de generosidade impor a democracia ocidental e as liberdades individuais a povos que estão carentes dessas dádivas de nossa civilização.

Poderíamos nos perguntar por que há tanta preocupação em democratizar e distribuir liberdades no Oriente Médio e tão pouco empenho em impor nossos avanços civilizatórios em locais como o Zimbábue, Burundi ou mesmo na China. Mas há coisas mais importantes do que satisfazer nossa curiosidade intelectual: é necessário reconhecer que nossa ação imperialista, arrogante e violenta acaba servindo de justificativa e reforço para a construção de ditaduras nacionalistas, radicais e militarizadas, seja no Iraque da década passada, seja no Irã que caminha, no momento presente, para a produção de armamento nuclear.

Pelo jeito, as velhas cruzadas não serviram de lição para o Ocidente.

* Professor de História Contemporânea da USC e Coordenador Regional do Instituto Teotônio Vilela

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