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Os segredos do mensalão, dez anos depois

(Alex Majoli/Magnum Photos/VEJA)
(Alex Majoli/Magnum Photos/VEJA)

Da revista Veja 

1 OS SEGREDOS DO MENSALÃO

Na edição de 18 de maio de 2005, VEJA publicou uma reportagem exclusiva sobre um funcionário dos Correios filmado quando embolsava uma propina de 3 000 reais. Era puxado ali o fio da meada do mensalão, o primeiro dos dois esquemas de compra de apoio político engendrados no governo do PT. Nos doze meses seguintes, o Congresso esquadrinhou cada peça dessa engrenagem criminosa abastecida com recursos desviados dos cofres públicos. Os resultados produzidos representaram um ponto fora da curva na tradição de impunidade que beneficia os poderosos. Com base em provas colhidas pela CPI dos Correios, três deputados tiveram o mandato cassado, quarenta pessoas foram denunciadas pelo Ministério Público e 24 condenadas pelo Supremo Tribunal Federal (STF). A antiga cúpula petista foi sentenciada à prisão. Antes cotado para a sucessão de Lula na Presidência, José Dirceu passou quase um ano atrás das grades numa penitenciária em Brasília. Banqueiros e empresários ainda estão encarcerados. Os criminosos de punho de renda foram finalmente apresentados ao castigo — não sem antes ouvir uma reprimenda moral histórica. “São eles, corruptores e corruptos, os profanadores da República, os subversivos da ordem institucional, são delinquentes e marginais da ética do poder”, disse o decano do STF, o ministro Celso de Mello.

Hoje, o mensalão ocupa um papel secundário no panteão dos escândalos nacionais. Foi superado, em cifras e ousadia, pelo petrolão, mas alguns de seus pontos ainda precisam ser elucidados. O mais intrigante deles é como o ex-presidente Lula se livrou da responsabilidade no caso, se era, em última instância, o principal beneficiário dos votos comprados no plenário da Câmara. A reportagem a seguir desvenda como Lula escapou do risco de ser apontado como o chefe do mensalão e de responder a um processo de impeachment durante a CPI dos Correios. O sucesso da blindagem ao ex-presidente não decorreu apenas da capacidade de negociação de seus articuladores políticos. O PT negociou o silêncio do empresário Marcos Valério quando ele — às vésperas da conclusão da CPI dos Correios — avisou que acusaria Lula de comandar o mensalão se não recebesse uma ajuda financeira milionária. Um empresário amigo foi convocado para pagar a fatura e Valério se recolheu. Lula se livrou da CPI, reelegeu-se em 2006 e foi o efetivo cabo eleitoral de Dilma em 2010. Em 2012, Valério contou parte de seus segredos ao Ministério Público, tentando um acordo de delação premiada. Já era tarde. Lula não podia mais ser incluído no processo. O empresário cumpre uma pena de 37 anos de prisão. Definitivamente, não fez um bom negócio.

2 O SUBORNO

As vésperas da conclusão da CPI o empresário Marcos Valério pediu dinheiro ao PT para não envolver Lula no escândalo

No início de 2006, a CPI dos Correios entrava em sua fase decisiva. Comandada pelo senador Delcídio Amaral (PT-MS) e pelo deputado Osmar Serraglio (PMDB-PR), a comissão já havia colhido os dados e os depoimentos que resultaram na cassação do mandato de Roberto Jefferson (PTB-RJ), o delator do mensalão, e de José Dirceu (PT-SP), considerado o gerente do esquema. Também já havia reunido provas de que o governo do PT usara recursos desviados dos cofres públicos para subornar parlamentares. O quebra-cabeça do mensalão estava quase montado. Faltava apenas uma peça, justamente a mais importante: quem era de fato o comandante do esquema de corrupção? O ex-ministro Dirceu, como diziam as testemunhas, ou o então presidente Lula, o principal beneficiário da engrenagem criminosa? O relatório final da CPI dos Correios isentou Lula de responsabilidade. Essa decisão decorreu de duas negociações de bastidor. Uma delas foi desenhada pela mente brilhante do então ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos (veja a reportagem), morto em 2014. A outra, que se manteve secreta por uma década, será narrada a seguir.

Em 13 de fevereiro de 2006, dois meses antes da votação do relatório final da CPI dos Correios, o empresário Marcos Valério viajou a Brasília para uma conversa sigilosa com Delcídio Amaral. Os dois se encontraram no apartamento de Cleide Ferreira da Cruz, funcionária da estrita confiança do senador. Delcídio e Valério dividiram a mesa de jantar, doses de uísque, confissões e uma ameaça. Numa conversa que varou a madrugada, o empresário relatou minuciosamente seus problemas de ordem familiar e empresarial. Estava atordoado. Em meio às queixas, foi assertivo: se o PT não lhe desse uma ajuda financeira, contaria os detalhes do envolvimento direto de Lula no mensalão. O PT teria de comprar o seu silêncio. Delcídio costuma brincar que “suporta” os petistas. A recíproca é verdadeira, e ele não é nada querido por seus colegas de partido, que o chamam de traidor. Como de costume, a verdade está no meio do caminho.

Diante de informações tão preciosas, Delcídio mostrou lealdade a Lula, com quem mantém boa relação até hoje. O senador entrou em contato com Paulo Okamotto, zelador das contas pessoais do ex-presidente, e disse que precisava falar urgentemente com o mandatário. Horas depois, o então ministro da Fazenda, Antonio Palocci, ligou para Delcídio para saber o que tanto o angustiava. Ministro mais poderoso do governo depois da queda de Dirceu, Palocci foi apresentado à chantagem. A roda governista, então, girou como nunca para impedir que Lula voltasse ao centro do debate. As revelações de Valério que espantaram Delcídio reavivariam a possibilidade de um pedido de impeachment contra Lula e tornariam certa sua responsabilização pela CPI dos Correios.

Depois do jantar, Valério não cumpriu a ameaça nem passou novas informações à comissão, que aprovou seu relatório cinquenta dias depois do convescote. Em outubro de 2006, Lula foi reeleito. Sob a proteção do anonimato, um confidente do ex-presidente narra o que aconteceu: “Um dia, um grande empresário me contou que havia sido surpreendido com um pedido para depositar recursos numa conta no exterior. O dinheiro era para o Valério”. Sócio das agências de publicidade SMP&B e DNA, Valério já havia ameaçado o PT. Foi em julho de 2005, logo no início dos trabalhos da CPI dos Correios. Na ocasião, avisou que entregaria os crimes do partido e acusaria Lula de chefiar os mensaleiros se não recebesse 200 milhões de reais, além de ajuda para se livrar de constrangimentos na Justiça. Valério procurou Delcídio sete meses depois da chantagem inicial porque a compensação financeira não fluía. O operador manteve silêncio até setembro de 2012, quando o STF o condenou por crimes como corrupção e lavagem de dinheiro. Valério depôs e propôs um acordo de delação premiada ao Ministério Público, que foi negado. Os segredos que sonegou à CPI dos Correios ficaram guardados por muito tempo.

“SITUAÇÃO FINANCEIRA DIFÍCIL”

Delcídio Amaral exercia seu primeiro mandato de senador quando foi escolhido pelo PT para presidir a CPI dos Correios. O partido tinha certeza de que faria do novato uma marionete e abafaria a investigação. Foi um tiro no pé. Sob a batuta dele, a comissão produziu provas que resultaram na cassação do mandato de José Dirceu e atestou a existência do mensalão, mas poupou Lula. O novato caiu em desgraça no PT, porém ganhou créditos com o ex-presidente.

Há dez anos, o senhor, um petista, presidiu a CPI que condenou o PT e a cúpula do partido. Como foi essa experiência? As pressões sempre existiram. Havia uma reação muito forte ao relatório do deputado Osmar Serraglio, mas também havia restrições aoPSDB. A virtude da CPI dos Correios foi descontentar os dois lados, O que mostra que ela não foi parcial. Tenho convicção de que fui correto na condução dos trabalhos.

Alguns petistas choraram ao tomar conhecimento da dimensão do escândalo. O senhor não ficou constrangido? Não se pode carimbar o PT como o responsável pelos grandes males da corrupção no país. Essa é uma grande distorção. Tentam associar o PT a falcatruas e desmandos, mas todos os grandes partidos passaram por problemas parecidos. O próprio mensalão teve origem em Minas Gerais (no governo do PSDB).

Mas o PT até hoje jura que o mensalão não existiu, que foi uma conspiração. Não me cabe comentar. A Justiça avaliou o processo e já formou opinião.

Na CPI, o PT não reconhecia a existência do mensalão. Já o PSDB queria responsabilizar o então presidente Lula pelo esquema de corrupção. Por que petistas e tucanos fracassaram nesses objetivos? A madrugada anterior à votação do relatório final foi o momento de maior tensão em onze meses de trabalho. Houve pressão de todos os lados. O relator teve de fazer um trabalho cirúrgico, porque tínhamos de conciliar um relatório consistente e, ao mesmo tempo, capaz de reunir os votos necessários para a aprovação. Foi feito um grande trabalho de negociação.

Quem no governo ajudou a CPI dos Correios a aprovar um relatório que confirmou o mensalão, mas livrou o então presidente Lula? O governo talvez não conhecesse todo o relatório, mas sabia dos pontos principais. A política é a arte do possível. O ministro Márcio Thomaz Bastos teve um papel muito importante naquela época. Além de muito experiente, era efetivamente o grande articulador político. Ele foi o maior protagonista.

O ex-ministro José Dirceu sempre se disse injustiçado no processo do mensalão. O senhor concorda com ele? Não faço juízo das pessoas, mas acho que ele foi vítima do papel que desempenhou na ascensão do PT ao comando do governo federal e, depois, como ministro da Casa Civil.

Em fevereiro de 2006, o senhor teve uma reunião secreta com o empresário Marcos Valério no apartamento de uma servidora do Senado. Qual o tema do encontro? Como presidente da CPI, sempre estava aberto ao diálogo. O Marcos Valério era uma peça-chave na investigação. Tinha de recebê-lo. Na conversa, o Valério falou do sofrimento familiar e dos problemas empresariais. Disse que enfrentava uma situação financeira difícil. Relatei a alguns integrantes da CPI os argumentos apresentados por ele.

Ele pediu dinheiro? Para mim, não.
O senhor soube se a situação financeira difícil dele foi resolvida? Não sei lhe dizer.

3 A AMEAÇA AO CHEFE

Antes de ser condenado por corrupção, o ex-ministro José Dirceu, que sempre jurou inocência, insinuou que Lula comandava o esquema

Ex-chefe da Casa Civil, José Dirceu sempre protestou contra as punições que sofreu no processo do mensalão, como a cassação de seu mandato de deputado, em dezembro de 2005, e sua prisão, em novembro de 2013. Em linha com a cartilha petista, dizia que o mensalão não existiu e que o PT era vítima de uma conspiração de setores conservadores da sociedade contrariados com o sucesso do primeiro governo popular da história do país. Dirceu, que outrora fazia questão de cultivar a fama de todo-poderoso, passou a desfilar no figurino de injustiçado. Esse era o discurso pregado para o público externo. A amigos, no entanto, Dirceu continua a culpar um outro ator por sua derrocada: o ex-presidente Lula. Antes de ser condenado por corrupção ativa pelo Supremo Tribunal Federal (STF), Dirceu desabafou com um parlamentar governista: “Não era eu quem visitava a Granja do Torto nos fins de semana. O Lula devia falar das visitas que o Valério fez à Granja do Torto”.

Um petista próximo do ex-presidente e do ex-ministro conta uma história parecida. De acordo com ele, Dirceu sempre falou que Delúbio Soares, o ex-tesoureiro petista que protagonizou o mensalão, prestava contas a Lula, e não a ele. Dirceu não só não gostava de Delúbio como tentou derrubá-lo da função, para colocar em seu lugar algum quadro partidário que tivesse mandato parlamentar. Principal responsável pela profissionalização do PT e pela mudança de discurso que levou o partido ao comando do país, Dirceu aceitou calado a cadeia e a perda dos direitos políticos. Jamais se voltou contra o antigo chefe, que lhe prometeu ajuda — e recursos — para desmontar a “farsa do mensalão”. Deu em nada. Investigado no escândalo do petrolão, o ex-ministro agora emite sinais de que pode contar o que sabe sobre os dois esquemas de corrupção usados pelo governo para comprar o apoio de partidos aliados. Seus amigos garantem que, se cumprir a promessa, o magoado e abandonado Dirceu vai fritar o antigo chefe. Se não for preso de novo, ele tem planos de se mudar para Portugal com a esposa e a filha mais nova.

4 ACUSAÇÃO AO CAPITÃO

Ex-comandante relata diálogo em que Lula aponta para Dirceu

Lula nunca erra, perde uma disputa ou tem conhecimento de fatos desabonadores.

Se há erros e fracassos, eles são de responsabilidade do PT. No mensalão, não foi diferente. No livro Minha Travessia, o almirante Roberto Carvalho, comandante da Marinha entre 2003 e 2007, revela como Lula insinuou que José Dirceu, o “capitão do time”, era o responsável pelo esquema de suborno parlamentar. Em uma conversa no Planalto, o presidente disse: “Eu devia ter tirado o Zé quando surgiu aquele primeiro problema”. Para o almirante, era uma referência ao vídeo em que um ex-assessor de Dirceu aparece negociando propina. O almirante registra também outra frase de Lula: “Algum dia o Zé vai ter de explicar para a sociedade brasileira tudo o que fez”. Em público, o ex-presidente sempre manifestou solidariedade ao companheiro. Essa atitude de duas caras de Lula animou o almirante a registrar as frases no livro. Disse Carvalho a VEJA: “Esses comentários diziam respeito a um fato grave que tinha ocorrido no país. A sociedade brasileira merecia saber disso”.

5 NEGOCIAÇÃO

O PT se rendeu ao mensalão para proteger Lula

Na madrugada de 5 de abril de 2006, o deputado Osmar Serraglio (PMDB-PR) trabalhava na sala dos consultores do Senado para fechar o relatório flnal da CPI dos Correios, que seria votado nas horas seguintes. Detalhista, ele não queria deixar brechas para contestações dos investigados. Rigoroso, fazia questão de registrar no texto as pistas que poderiam ser seguidas pelo Ministério Público para fisgar os peixes graúdos que escaparam da rede de combate à corrupção da comissão. A construção do relatório final não foi uma tarefa simples. Durante as investigações, houve tentativas de sabotagem. Os próprios parlamentares roubaram ou danificaram documentos confidenciais que comprometiam a eles ou a aliados. Bancos enviaram dados de sigilos bancários desfigurados ou fraudados para atrapalhar a apuração do caso. Naquela madrugada, o trabalho de coleta e organização das provas já não era o mais importante. Faltava a negociação política que permitisse a aprovação do relatório e o encerramento da CPI. O ambiente não era nada favorável.

O PT já havia anunciado que tentaria derrubar a proposta de Serraglio. O partido não aceitava a afirmação de que o governo comprara apoio parlamentar com dinheiro desviado dos cofres públicos e defendia a tese de que tudo não passara de um cândido esquema de caixa dois eleitoral. Já os tucanos queriam a responsabilização do presidente Lula — até então poupado pelo relator — como chefe do esquema. Sob os holofotes da imprensa, essas posições estavam cristalizadas. O diálogo parecia interditado, e o desfecho da comissão, incerto. Havia a possibilidade de o relatório de Serraglio não ser aprovado, como queriam os petistas. Mas havia também a possibilidade de os tucanos conseguirem apoio ao voto em separado que pedia um processo de impeachment contra Lula. Coube ao então ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, com suas pontes privilegiadas no Planalto e no PSDB, desenhar uma solução. E ela era bastante simples: o governo aceitaria o relatório de Serraglio, mesmo com o reconhecimento do mensalão, e o PSDB abriria mão da tentativa de envolver o presidente da República. Assim foi feito. O texto de Serraglio foi aprovado por 17 votos a 4. O PT estrilou, mas o Planalto respirou aliviado. “Meu voto em separado serviu de pressão para garantir a aprovação pelo menos do relatório do Serraglio, o que já foi algo extraordinário diante das circunstâncias”, diz o senador Al varo Dias (PSDB-PR).

“COLOCARIAM O ‘EXÉRCITO’ NA RUA”

Filiado ao PMDB desde 1981, o deputado Osmar Serraglio nunca integrou o grupo de caciques que comanda o partido nem fez questão de estar sob os holofotes. Foi escolhido para relatar a CPI dos Correios justamente pelo perfil técnico e discreto. Como os petistas, os peemedebistas pensavam que seria fácil controlar um correligionário de “segunda linha”, como o qualificavam de forma jocosa. Ledo engano. Resistindo a pressões e tentativas de sabotagem e manipulação, Serraglio produziu um relatório de 1880 páginas, cujos dados fundamentaram a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de condenar à prisão os mensaleiros mais célebres. A sentença histórica não alterou o status do parlamentar, que continua como coadjuvante.

Qual o principal legado da CPI dos Correios?
Foi a demonstração de que uma CPI bem-intencionada realmente colhe as provas necessárias para a responsabilização. Ela não tergiversa. Ela enfrenta, aprofunda a investigação e leva a quem julgará todos os elementos necessários para a tomada de decisão. Esse grande mérito nós tivemos, tanto que os ministros do Supremo se curvaram à realidade das provas.

Os políticos aprenderam com as lições do mensalão?
Quando o pessoal da mais alta posição no governo foi responsabilizado, inclusive um quadro que poderia ser sucessor no comando da República, eu esperava que pelo menos se infundisse o temor. Que pelo menos eles passassem a ter consciência de que, dali em diante, poderiam ser punidos.
O que percebemos no escândalo da Petrobras é que, com a mesma desfaçatez, com a mesma certeza de impunidade, a conduta ilícita prosseguiu. Nunca imaginei que viveríamos uma situação piorada.

Foi forte a pressão para abafar a CPI dos Correios?
Vou contar um episódio ilustrativo. Indicaram-me um funcionário do Senado para trabalhar na produção das provas. Ele me ajudava a coletá-las e sistematizá-las. Às vésperas da apresentação do relatório parcial da comissão, esse servidor deixou o trabalho. Tirou férias ou o esconderam, não sei. Tive de produzir o relatório sozinho. Foi uma casca de banana que colocaram no meu caminho.

Houve outras cascas de banana? Um dia cheguei à comissão e havia em cima da minha mesa um envelope amarelo, com a chamada Lista de Furnas dentro. Como não sabia a origem do material, remeti-o à Polícia Federal. Eles queriam que eu esquadrinhasse a Lista de Furnas para desviar o foco. Era tudo visivelmente falso. Tentaram criar uma cortina de fumaça, mas não conseguiram.

Por que o ex-presidente Lula, cujo governo se beneficiou do mensalão, não foi incluído no rol dos pedidos de indiciamento da CPI dos Correios? No relatório final, eu escrevo que o Lula sabia de tudo. Relato pelo menos três testemunhos que garantem que ele foi alertado sobre a existência do esquema. Mas eu não podia responsabilizá-lo objetivamente pelo mensalão. Não podia dizer que pelo simples fato de ser o presidente da República devia responder por atos ilícitos de subalternos, até porque, ao tomar conhecimento dos fatos, o Lula mandou averiguar, ao menos segundo os

Além desse aspecto técnico, pesou um ingrediente político? Eles (os petistas) colocariam o “exército” na rua, como já ameaçaram, e o país viveria uma guerra civil. O Lula era muito popular. Havia, sim, medo deles, e eles jogavam e jogam pesado.

6 METAMORFOSE DE CONVENIÊNCIA

As diversas — e contraditórias — versões do ex-presidente para o escândalo que abalou seu governo

0ex-presidente Lula já foi contra a Lei de Responsabilidade Fiscal, crítico contumaz de autoridades acusadas de corrupção e adversário flgadal de políticos como o senador Fernando Collor de Mello (PTB-AL) e o deputado Paulo Maluf (PP-SP). Ao conquistar o poder, abandonou seguidamente suas convicções dos tempos de oposição. A mudança, no caso da economia, fez bem ao país. Ele manteve o receituário de Fernando Henrique e o equilíbrio das contas públicas. Na seara dos costumes, o bom e velho Lula trocou de figurino sempre com um único propósito: evitar desgastes pessoais e preservar a própria imagem. O processo do mensalão é emblemático dessa fé que o petista nutre, como ele mesmo já ressaltou, na ideia de ser uma metamorfose ambulante. Quando o esquema de corrupção começou a ser desvendado, Lula afirmou que não sabia de nada e se disse traído em rede nacional de rádio e televisão. Por quem? Não esclareceu.

Reeleito em 2006, ele deixou de lado o discurso segundo o qual o PT incorrera em “práticas inaceitáveis” e passou a anunciar uma campanha para desmontar a “farsa do mensalão”. Lula continuava como vítima, mas agora dos tais setores conservadores da sociedade. Ao deixar o governo, ele de fato pressionou ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) a adiar o julgamento do mensalão e absolver seus companheiros. De quebra, ordenou a petistas que usassem a CPI do Cachoeira para constranger Roberto Gurgel, o procurador-geral da República responsável pela denúncia dos mensaleiros. A ofensiva não deu resultado. A antiga cúpula do PT foi condenada e presa. Derrotado, Lula recolheu as armas, baixou o tom e passou a dizer que um dia contaria a verdadeira história do mensalão. Quando? De novo, não esclareceu. Não é apenas o ex-presidente que muda. Os escândalos também se sucedem. Hoje, a preocupação de Lula é com os rumos do petrolão. Seu amigo Ricardo Pessoa, dono da construtora UTC, disse que doou dinheiro de caixa dois para a campanha à reeleição do petista. O doleiro Alberto Youssef afirmou que o petista sabia da roubalheira na estatal. Lula nega. Alega que não sabia de nada. Logo, logo, poderá se dizer traído…

7 QUADRILHA

O caso foi encerrado sem a resposta para o principal enigma

0 mensalão foi investigado por duas comissões parlamentares de inquérito no Congresso Nacional, pela Polícia Federal e pelo Ministério Público. Depois, foi esquadrinhado em um longo julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF), que o coroou como o mais importante processo de corrupção já julgado na corte. Uma vez descoberto, o esquema foi esmiuçado à exaustão. Pela primeira vez na história, a cúpula do partido no poder foi mandada à cadeia. Parlamentares importantes foram enxotados do Congresso Nacional — um avanço institucional diante da cultura atávica da impunidade. Mas, ao menos na narrativa oficial, restou uma lacuna: o mensalão passou à história como um crime sem mandante, uma quadrilha sem chefe, um monumental caso de corrupção comandado por geração espontânea. O topo do organograma ficou vazio.

Sabia-se que o mensalão fora arquitetado para comprar o apoio político de congressistas a projetos do governo. Até por essa razão, é óbvio que o principal interessado no funcionamento do esquema era o Palácio do Planalto. Mas quem, afinal, era o grande beneficiário? Na peça acusatória apresentada ao STF pelo então procurador-geral da República Antonio Fernando de Souza, já estava estabelecido um “teto” para a cadeia de comando: o esquema atendia aos interesses do Planalto, e ponto. Mas quem era o Planalto? Para o Ministério Público, era o ex-ministro José Dirceu, mas nem isso resistiu por muito tempo. O STF condenou Dirceu como chefe da quadrilha. Meses depois, ao julgar os recursos dos réus, a corte reviu a decisão e anulou o crime de quadrilha. Se não havia quadrilha, impossível haver um chefe. E assim, apesar do grande avanço institucional, o enigma continuou sem resposta.

8 SENTENÇAS HISTÓRICAS
Corruptos e corruptores condenados à cadeia

Foi um processo histórico. O Ministério Público e o Poder Judiciário resistiram à pressão para abafar o mensalão e mostraram ao PT que, mesmo detentor do poder, ele não está acima das instituições democráticas. Foi também um julgamento histórico. Durante um ano e meio, o Supremo Tribunal Federal (STF) realizou 69 sessões plenárias, transmitidas ao vivo pela televisão, para condenar 24 mensaleiros e determinar a prisão da antiga cúpula petista. Políticos poderosos eram finalmente apresentados às barras da Justiça. Até o ex-chefe da Casa Civil José Dirceu, outrora cotado para suceder Lula na Presidência da República, ficou preso durante um ano na Penitenciária da Papuda, em Brasília. A tradição nacional de impunidade sofria um duro golpe. Além das penas aplicadas, foi histórica a reprimenda moral dos ministros do STF aos petistas.

Em linha com a CPI dos Correios, eles reconheceram a existência do mensalão e o uso de recursos desviados dos cofres públicos para corromper parlamentares. Acusaram o PT de atentar contra a democracia e lançar mão da engrenagem criminosa para se perpetuar no poder. A decisão contou com a ampla maioria dos votos de um plenário composto majoritariamente de ministros indicados por Lula e Dilma Rousseff. O STF tirou dos mensaleiros até mesmo o argumento fajuto de que eram vítimas de uma conspiração de adversários. Disse o decano Celso de Mello, numa definição lapidar sobre o mensalão, seus atores e seus propósitos: “São eles, corruptores e corruptos, os profanadores da República, os subversivos da ordem institucional, são delinqüentes e marginais da ética do poder, são infratores da ordem do Erário e trazem consigo a marca e o estigma da desonestidade”.

9 O INÍCIO E O FIM

O personagem que simbolizou o método de fazer política da última década pensou em se matar

Entre o olhar desconfiado e o reflexo de esticar o braço, pegar o maço de notas e enfiá-lo no bolso do paletó foram exatos três segundos — o suficiente para desencadear a maior crise política do período pós-democrático. Para o ex-diretor dos Correios Maurício Marinho, o vídeo significaria mais que o fim da carreira de executivo. Na conversa gravada, Marinho deu as linhas gerais do esquema do qual ele era apenas uma ponta. Contou que representava o PTB e que privilegiava algumas empresas em troca de “contribuições” para o partido. Depois das revelações, o deputado Roberto Jefferson confessou que aquilo não era um ato isolado. Era uma estratégia do governo. O nome da fraude: mensalão. Dez anos se passaram. Mesmo condenados e até presos, alguns dos envolvidos no escândalo já voltaram a cumprir a antiga rotina em que se misturam poder e dinheiro. Maurício Marinho não. Sua vida virou do avesso. Foi demitido dos Correios, os amigos sumiram, os parentes se afastaram e ele ainda responde a processo por vários crimes. Desesperado, chegou a ponto de considerar a hipótese de tirar a própria vida, o que só não aconteceu graças à conversão religiosa.

O ex-diretor vive hoje com 3 200 reais da aposentadoria do INSS — 200 reais a mais do que aparece embolsando na cena que entrou para a história da corrupção no Brasil. A condenação judicial ainda não veio, mas Marinho reclama que é um preso digital, refém da imagem. Disse o juiz Issamu Shinozaki Filho, respondendo a um pedido dos advogados do ex-diretor, que queriam abolir o vídeo da internet:

“As cenas protagonizadas constituem fato público notório, perenizadas inclusive na memória coletiva”. Mais que isso. A imagem, revelada por VEJA em maio de 2005, sintetiza um método degradante de fazer política que precisa ser punido com rigor e definitivamente exterminado.

10 PETROMENSALÃO

Há dez anos, uma reportagem de VEJA publicada no auge do escândalo já mostrava o que seriam a gênese do mensalão e suas similaridades com o esquema de corrupção na Petrobras
Enquanto o mensalão era desarticulado, um esquema de corrupção ainda maior estava sendo montado com a mesma finalidade — irrigar os bolsos de políticos e os cofres de partidos aliados como forma de manter firme a base de sustentação do governo. O escândalo de corrupção da Petrobras, sabe-se hoje, funcionava desde o início da década passada e desviou mais de 6 bilhões de reais dos cofres da estatal. Esse gigantesco desfalque poderia ter sido evitado? Poderia. Em julho de 2005, uma reportagem de VEJA já fornecia as primeiras pistas daquilo que nos dias atuais é chamado de petrolão. A espinha dorsal do esquema estava descrita no texto. O ex-ministro-chefe da Casa Civil José Dirceu aparecia como o responsável pela indicação de diretores da Petrobras, entre eles um tal Renato Duque, o ex-diretor de serviços da estatal, que está preso e é acusado de desviar 200 milhões de dólares para os cofres do PT.

A reportagem falava de outra figura desconhecida — o empresário Augusto Mendonça, sócio de uma empresa chamada Setal, que enfrentava dificuldades financeiras e precisava de ajuda. Mendonça conseguiu o apoio que queria por meio de um contrato de 600 milhões de reais com a Petrobras. O desfecho da história é conhecido agora. Augusto Mendonça foi preso, fez um acordo de delação premiada com a Justiça e contou o que sabia, aquilo de que já se desconfiava em 2005. A contrapartida para ganhar os contratos era repassar um porcentual dos lucros da empresa ao PT, mais especificamente ao tesoureiro do partido, João Vaccari Neto, que também está preso.

O mensalão e o petrolão faziam parte de uma única estratégia: a de transformar o domínio sobre os grandes orçamentos da máquina federal, com seus contratos polpudos, em um meio de obter dinheiro fácil para o financiamento do projeto de poder do partido e, sempre que possível, também para o enriquecimento pessoal de seus comandantes. No mensalão, o alvo da rapinagem

eram os contratos de publicidade de estatais. No petrolão. são os bilhões gastos pela Petrobras em contratos de construção e aluguel de navios e plataformas, obras de refinarias, manutenção de oleodutos e afins. No mensalão, José Dirceu foi condenado como o mais proeminente integrante do esquema criminoso. Hoje, cumprindo em casa o restante da pena que lhe foi imposta pelo Supremo Tribunal Federal, ele também é investigado no petrolão. Como “consultor”, o ex-ministro recebeu pelo menos 8 milhões de reais das empreiteiras que abasteciam o esquema. A quadrilha foi apanhada de novo. Os chefes continuam ocultos.

http://veja.abril.com.br/noticia/brasil/os-segredos-do-mensalao-dez-anos-depois

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