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Partidos e ideologias

Fernando Henrique Cardoso

Julguei, ao notar certo oportunismo em alguns comentários que se aproveitaram do que eu disse em uma entrevista para confundir quem não a tenha lido com atenção, que convém esclarecer minha posição à respeito da relação do PSDB com as ideologias tradicionais. Primeiro, somente com sofismas pode-se imaginar que eu minimizo as diferenças entre “esquerda e direita”. Se eu não desse importância ao tema não teria porque reagir às declarações da Frances Hagopian quando aconselhou o PSDB a se mover para a centro-direita.

Concordei com ela que o PSDB deve defender com energia as realizações de seus governos. Na mesma conferência a cientista política disse também que os partidos brasileiros se tornaram mais programáticos. É provável que isso seja certo para uns poucos partidos. Discordei, entretanto, em comentários que fiz àquela conferência, dos exageros em acreditar que haja uma postura mais ideológica no conjunto de nosso espectro político.

Por outro lado, as políticas dos governos do PSDB nada tiveram a ver com o que na disputa ideológica se chama no Brasil de centro-direita. O que fizemos foi repor a economia em ordem com o Plano Real, que acabou com a inflação; reorganizar o Estado para dar-lhe maior capacidade de lidar com a economia global (agências reguladoras, Cade etc); reduzir as ingerências partidárias nas empresas estatais; colocar o SUS em funcionamento; ampliar o acesso à escola pública; retomar os investimentos produtivos, arrasados pela inflação e pela desordem administrativa; dar fôlego à reforma agrária criando um ministério para sustentá-la e, finalmente, executar uma série de medidas de inclusão social, desde aumentos contínuos do salário mínimo real até ao início das transferências diretas de renda, com a Bolsa Escola (que atendeu cinco milhões de famílias) e com outros mecanismos mais que foram incorporadas posteriormente no programa Bolsa Família.

O resultado das políticas sociais do PSDB, como ainda recentemente ressaltou Fabio Giambiagi no jornal Valor, não só foi semelhante aos resultados obtidos pelo governo Lula, como os governos dos dois partidos reduziram a miséria e a pobreza e diminuíram um pouco as desigualdades de renda. O salário mínimo real aumentou anualmente 4,7 % em meu governo e 5,5% no governo Lula; as aposentadorias cresceram 2,4% no governo do PSDB e 0,6% no governo do PT e o coeficiente de Gini, que mede desigualdades, melhorou um pouco, caindo de 0,60 (1993) para 0,56 (2002), chegando a 0,52 (2009).

Por estas razões é que me insurjo contra adjetivações eleitoreiras, pra não dizer maldosas, que tentam qualificar o PSDB como “neo-liberal” (política proposta pelos governos de Margareth Tatcher e Reagan-Bush), enquanto o PT, que segue as linhas gerais do projeto do PSDB, se posicionaria como “de esquerda”. Essa categorização não tem nada a ver com a realidade. E nem se diga que esses partidos fizeram alianças diferentes: a “base” sobre a qual os governos do PT se apóiam difere pouco da que apoiou os governos do PSDB. O número de ministros filiados a partidos aliados que serviram aos dois governos é prova disso. Possivelmente, nos governos do PT houve mais líderes e ministros que pertenceram a governos anteriores, tanto do período democrático como do autoritário. Por que? Porque os partidos em que estão filiados pouco têm a ver com ideologias, mas com estar ou não nos governos e deles se beneficiarem. Foi em referência a essas práticas que mencionei a desimportância das ideologias no comportamento real dos políticos brasileiros. Como, ademais, todo mundo sabe e comenta.

Por fim, para não me alongar, eu disse na entrevista dada ao Estadão o que parece óbvio: nenhum partido propõe, na prática e nem mesmo no discurso, o que era a marca característica da esquerda no passado: fazer uma revolução, ainda que por meios pacíficos. Não se fala mais em levar ao poder um partido que represente a classe trabalhadora, ou os despossuídos, e que, uma vez dominante, transfira a propriedade privada para as mãos do Estado ou para outras formas de apropriação coletiva. Isto existe em Cuba e na Coréia do Norte, não mais dessa forma sequer na China.

Portanto, quem se proclama “de esquerda” precisa explicar melhor o conteúdo da afirmação, especificando o projeto que tem para o país e como vai exercê-lo, se democraticamente ou não. Tampouco seria legítimo confundir esquerda com populismo autoritário de bases nacionalistas, estilo Chavez, ou ingerência estatal crescente nos mercados, pois isso até o general Geisel fez, sem ser de esquerda.

Foram estes meus argumentos, que podem naturalmente ser rebatidos, mas se forem tomados com seriedade, não devem ser desqualificados com afirmações genéricas dando a entender que desmereço diferenças entre esquerda e direita. Desejo apenas contextualizá-las.

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