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Prisioneiros da democracia

Precisamos ser cativos da democracia
No Brasil, temos de repudiar a sugestão de que menos democracia pode implicar
mais justiça social.

O Brasil comemora hoje os 25 anos da Nova República. Isso quer dizer que
celebra um quarto de século de estabilidade política e de plena vigência do Estado
de Direito, o mais longo período da fase republicana com essas características. Na
primeira década da restauração da normalidade institucional, a democracia de
massas firmou-se e afirmou-se no bojo da nova Constituição. E isso se deu apesar
da morte do presidente eleito Tancredo Neves, da superinflação, do sufoco
externo e do impeachment do primeiro presidente eleito pelo voto direto desde
1960.
A partir da estabilidade de preços conquistada pelo Plano Real, a credibilidade
externa foi sendo reconquistada, nosso setor produtivo tornou-se mais competitivo
interna e externamente, as fronteiras do comércio se expandiram e, acima de
tudo, deflagrou-se um processo cumulativo de acesso das camadas mais pobres a
um nível mínimo de bem-estar social. E essa mudança não caiu, como diria
alguém, da árvore dos acontecimentos. Foi uma construção.
Durante muito tempo, a imagem do Brasil como o país do futuro foi para nós uma
bênção e uma condenação. Se ela nos ajudava a manter a esperança de que um
dia transformaríamos nosso extraordinário potencial em felicidade vivida, também
nos condenava a certo conformismo, que empurrava, sempre para mais tarde, os
esforços e sacrifícios necessários para a superação delimites. Durante um bom
tempo, o gigante que um dia acordaria serviu mais à má poesia do que à boa
política. E tivemos de dar o primeiro passo, aquele que, pode-se dizer agora,
decorridos 25 anos, foi um ato de fato inaugural. E não que a fronteira tenha sido
rompida sem oposições de todos os lados.

Certo convencionalismo pretende que a história dos povos se dê numa alternância
mecânica de ruptura e acomodação; a primeira engendraria mudanças que
acelerariam a história, conduzindo a um patamar superior de civilização; a
segunda concentraria as forças da conservação ou mesmo do reacionarismo,
sendo fonte de perpetuação de injustiças.

A nossa história de país livre não endossa esse mecanicismo. Sucedendo à
monarquia constitucional, a República entrou em colapso em menos de 40 anos.
Somente nos anos 90 tivemos o primeiro presidente (Fernando Henrique Cardoso)
que, eleito pelo voto universal, transmitiu o poder a um presidente igualmente
escolhido em eleições livres e que concluiu seu mandato. Em pouco mais de um
século de República, o Brasil teve dois presidentes constitucionais depostos, um
que se suicidou para evitar a deposição, um que renunciou e outro que foi
afastado de acordo com as disposições da Constituição no período, o país
experimentou duas ditaduras: a do Estado Novo e a militar.

Como se nota, experimentamos mais rupturas do que propriamente acomodação
” e boa parte delas não pode ser considerada um bem. Enquanto aquele futuro
mítico nos aguardava, as irresoluções foram se acumulando. Quando o Brasil, na
década de 80, se reencontrou com a democracia, era visto como uma das
sociedades mais desiguais do planeta, com uma dívida externa inadministrável,
uma economia desordenada e uma moeda que incorporara a inflação como um
dado da paisagem.

A Nova República teve a coragem da conciliação sem, no entanto, ceder nem
mesmo os anéis ao arbítrio. E isso só foi possível porque o povo brasileiro não se
deixou iludir pela miragem de uma mudança por meio da força. Entre a
democracia e a justiça social, escolhemos os dois. Nem aceitamos que a
necessidade da ordem nos impedisse de ver as óbvias injustiças nem permitimos
que, para corrigi-las, fossem solapadas as bases da liberdade. O povo ficou ao
lado das lideranças que tiveram a clarividência de escolher a transição negociada.

Aqueles eventos traumáticos que marcaram os 10 primeiros anos da Nova
República não chegaram nem sequer a arranhar a Constituição. Ao contrário:
curamos as dores decorrentes da democracia com mais democracia; seguimos
Tocqueville e respondemos aos desafios da liberdade com mais liberdade.

Essa vitória da mudança gradual sobre as ilusões da ruptura não se fez sem lutas.

Milhões de brasileiros foram para as ruas, em ordem e sem provocações, exigir o
voto popular direto para a Presidência e para todos os cargos eletivos. O
movimento das Diretas-Já não foi imediatamente vitorioso, mas mostrou sua
legitimidade e levou setores que apoiavam o “antigo regime” aperceber que uma
nova ordem estava nascendo: a ordem democrática.

Assistimos à Constituinte, às eleições diretas e à plena restauração da soberania
popular. Esse tripé da consolidação democrática, com seus corolários “alternância
no poder e transição pacífica”, são a base institucional que distingue o Brasil do
presente daquele da fase da instabilidade. Foi a crença nesses valores que nos
permitiu superar a ilusão de soluções radicais e imediatistas. A democracia,
tornada um valor inegociável, permitiu que os sucessivos governos pudessem
aprender com os erros de seus antecessores e os seus próprios, corrigindo-os, o
que concorre para o aperfeiçoamento das políticas públicas.

Não foram erros pequenos nem triviais. Alguns foram monumentais, como o
confisco da poupança e a tentação, de um cesarismo doidivanas, de acabar com a
inflação “num só golpe”, confiscando a poupança popular. A democracia que nos
permitia errar de modo fragoroso também nos permitiu um acerto histórico: a
implementação, nos governos Itamar Franco e Fernando Henrique, do Plano Real.

Ele nasce, sem dúvida, de uma engenharia econômica ímpar, de um rigor técnico
até então desconhecido no Brasil nos planos de estabilização, mas acredito que
uma das razões de seu sucesso nunca foi suficientemente considerada: ele foi
amplamente negociado com a sociedade, com um razoável período de transição
entre os dois regimes monetários. Mais uma vez, o gradualismo mostrava a sua
sabedoria.

A inflação não morreu com um golpe. Ela morreria com inteligência e democracia.

O significativo avanço das condições sociais e a redução do nível de pobreza no
Brasil, hoje exaltados em várias línguas, só se deram por conta de políticas que
foram se aperfeiçoando ao longo de duas décadas, como a universalização do
Funrural, os ganhos reais no salário mínimo e os programas de transferência de
renda para famílias em situação de extrema pobreza. O atual governo resolveu
reforçar essas políticas quando percebeu que “inovações” como o Fome Zero e o
Primeiro Emprego fracassaram. Também é um dado da realidade que as balizas
da estabilidade, cuja régua e compasso são o Plano Real, foram mantidas(mais no
primeiro do que no segundo mandato).

O crescimento, o desenvolvimento e o bem-estar não são manifestações divinas.

Não estão garantidos por alguma ordem superior, a que estamos necessariamente
destinados. Existem em função das escolhas que fazemos. Sou muito otimista
sobre as possibilidades do Brasil. Se, antes, parecíamos condenados a ter um
futuro inalcançável, hoje já se pode dizer que temos até um passado bastante
virtuoso. Mas é preciso cercar as margens de erro para que continuemos num
ciclo virtuoso. Dados recentes divulgados pelo IBGE demonstram que voltamos a
ter um déficit externo preocupante e que a taxa de investimento está bem abaixo
do desejável ” especialmente no caso do setor público ” para assegurar no futuro
a expansão necessária da economia e do consumo. Afinal, os desafios que o
Brasil tem pela frente ainda são imensos.

Com a Nova República, o Brasil fez a sua escolha pela democracia e pelo Estado
de Direito. É essa a experiência que temos de levar adiante, sem
experimentalismos e invencionices institucionais. Porque foi ela que nos ensinou
as virtudes da responsabilidade, inclusive a fiscal. Fazemos, sim, a nossa história;
fazemos as nossas escolhas, mas elas só são virtuosas dentro de um desenho
institucional estável.

Sejamos todos cativos da democracia. É a única prisão que presta seu tributo à
liberdade. Assim, repudiemos a simples sugestão de que menos democracia
pode, em certo sentido, implicar mais justiça social. Trata-se apenas de uma
fantasia de espíritos totalitários. Povos levados a fazer essa escolha acabam
ficando sem a democracia e sem a justiça.

*GOVERNADOR DE SÃO PAULO

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