Direto da fonte
Coluna Sonia Racy
O Estado de São Paulo
Eloísa de Souza Arruda, Secretária de Justiça do Estado alçada aos holofotes com o caso cracolândia, revela sua intimidade
Eloísa de Souza Arrudas ó se tornou a primeira mulher dona do posto de secretária de Justiça do Estado de São Paulo por conta de Padre Cícero. Depois de perder três bebês por desnutrição, sua avó cearense buscou conselhos do “líder político” – conforme definição da secretária – e mudou-se para o interior paulista para trabalhar em fazendas de café. Muitos calos e gerações depois, a então procuradora de justiça e professora de Direito da PUC foi escolhida por Geraldo Alckmin para integrar o governo. Entrou pela “cota de técnicos”.
Sem experiência político-partidária, conheceu o governador pessoalmente no dia em que foi nomeada, um ano atrás. Este janeiro foi o mês em que mais ficou em evidência. E por tema controverso: a desocupação da cracolândia, já que a ação acerta em cheio sua jurisdição.
Nesses 30 dias, deu dezenas de entrevistas por dia. Do programa Ronnie Von até BBC internacional. A coluna encontrou a escorpiana de 50 anos e ex-vendedora de cursinho do Etapa em restaurante na Vila Madalena, bairro onde mora com os filhos. A seguir, trechos da conversa, quando jurou não ter pretensões políticas.
Os métodos usados na desocupação da cracolândia foram satisfatórios?
A atuação foi correta eu só acho que estão faltando no jornal fotos dos nossos agentes de saúde e de assistência social trabalhando lá. Só se vê fotografia de farda. Diante de um cenário ocupado por traficantes e usuários em que a polícia tem que entrar, não dá para chegar e pedir: “Por gentileza, o senhor me acompanhe até o Distrito Policial”. O momento inicial foi tenso, de enfrentamento. Disparou bala de borracha? Disparou. Mas teve um único caso, o daquela moça cuja boca foi ferida por uma bala (e foi parar na capa de jornal).
Sem a publicação da foto, alguém descobriria esse caso?
Acho que sim, porque essa moça não era bobinha, não. Ela foi direto falar na Defensoria Pública. Uma ação muito boa foi a derrubada dos escombros onde os usuários moravam. Não tinha como salvar aqueles prédios com estruturas todas comprometidas.
Mas havia construção em processo de tombamento…
Era um prédio em que dizem que Julio Prestes morou. Tem gente que não tem consciência do que fala. O processo estava lá desde 2005. Estamos em 2012! Agora vem com esse papo furado de tombamento? A fachada está lá, agora eles podem fazer o que quiserem com a fachada deles. Que gente hipócrita, isso me dá raiva. A gente está falando de coisa séria, de um lugar tomado pelos bichos, onde as pessoas moravam, que virou um sinônimo do crime. “Mas morou Julio Prestes”. Ah, vai tomar banho, que Julio Prestes o quê? Isso é bom colocar.
Quem não foi para tratamento, se espalhou pela cidade. Isso não cria revolta nos moradores das redondezas que, muitas vezes, preferiam os usuários represados na rua Helvetia?
Sim, se espalharam. Cria uma revolta porque ninguém quer acordar de manhã e ter alguém na porta todo sujo, muito malcheiroso. Nem eu quero ter que ver essa cena. O interessante é que, como a pessoa é surpreendida, imediatamente liga para a polícia, que vai correndo com as equipes de saúde para dar encaminhamento. Não é difícil monitorar porque eles não vão para longe. E tem aquele maldito Castelinho (prédio abandonado no Centro), onde uma mulher dá comida. Quem faz isso pensa que é benemerência, que Jesus Cristo mandou, mas só atrapalha o serviço de assistência. Não queremos as pessoas dormindo na rua, sujeitas à intempéries. Há vagas em abrigo.
E a ação no Pinheirinho também foi correta na sua opinião?
A gente vive num País onde por vezes a ilegalidade termina sendo premiada. Alguns dizem: “As pessoas moravam lá porque eram pobres”. A desigualdade social no Brasil é uma realidade e muitos pobres ingressam em programas habitacionais e esperam sua hora para serem sorteados. Aquelas pessoas sabiam que era uma propriedade privada e invadiram, nunca pagaram imposto. Por trás da massa falida (de Naji Nahas) tem funcionários das empresas quebradas que esperam há anos seus débitos trabalhistas. Sei que as imagens da mãe com o bebezinho no colo são muito dramáticas, mas não podem justificar a invasão da propriedade privada e o descumprimento da ordem judicial. E teve muita confusão de informação. Pelo que me consta não há mortos, como disseram que tinha. É como eu digo: onde estão os cadáveres? Porque cadáveres cheiram mal. Eles não existem.
Enquanto estava grávida, a senhora participou de um júri, como promotora, em que acusava uma jovem por aborto. Como foi?
Muito difícil. São as hipocrisias da lei. Foi em 1994, a ré era professora, classe média, que engravidou e resolveu abortar. Justo naquele dia, a polícia fez uma batida na clínica e ela foi pega. Bem, aí tem uma lei que diz que o aborto é crime. O que eu ia fazer? Fui para o plenário grávida de sete meses, com barrigão.
Ficou constrangida?
Não pela minha barriga, mas porque aquela mulher não merecia ser condenada e perder a primariedade. Mas eu também não tinha como fugir da lei. Fiquei desconfortável sabendo o que talvez a minha condição de grávida pudesse gerar no emocional dela. E ela estava muito abalada, constrangida, muito, muito envergonhada. O júri a absolveu por quatro a três.
Uma ex-colega sua de promotoria a definiu como uma “feminista não azeda”. O que acha disso?
(Risos) Sei lá, essa coisa de rasgar sutiã já passou há muito tempo, as mulheres não precisam mais disso. Na política por exemplo, não acho que haja um complô machista contra elas. É mais uma falta de disponibilidade. Acabam optando por manter a família. Ainda temos muitas lutas, mas não é mais por postos de trabalho. Tem a ver com a autoestima feminina: respeitar o próprio corpo e saber que um homem não pode usá-lo quando e como quiser. É dizer “não”, exigir preservativo. Sem o “eu tenho que agradar e fazer a vontade dele”. Depois, a menina engravida com 14 anos e o homem ainda fica com ódio dela.
Como foi ser missionária da ONU no Timor Leste, investigando crimes de guerra?
Quando ligaram me convidando para a missão, minha perna tremeu. Na hora eu já sabia que queria, mas eu estava separada, cuidava sozinha dos meus dois filhos, na época com 5 e 6 anos. Eu oscilava: quero, mas não posso. Seriam sete meses do outro lado do mundo. Liguei pros meus pais que moravam em Minas. Me disseram: “Vai, que a gente te ajuda”. Eles se revezavam para vir a São Paulo. A mãe da minha empregada veio da Bahia para cuidar das crianças e da babá, que era danadinha. A mãe de uma ex-estagiária minha também se propôs a ajudar. E foi se criando uma rede de solidariedade para que eu pudesse ir. E fui. A única pessoa que não se comprometeu foi o pai deles (risos). Foi assim: “Me inclua fora dessa. Você quer ir? Vá, eu vou continuar pegando as crianças a cada 15 dias”.
A senhora sofreu muito?
Muito. Primeiro por causa da saudade. Me fazia falta o cheiro da cabecinha deles. Tinha medo de esquecerem meu rosto. Depois entrei num segundo sofrimento, porque eu não queria mais voltar. Só voltei por eles. O trabalho foi maravilhoso, eu amava. Acho que foi o único momento que eu consegui cuidar só de mim, porque aqui eu cuido de muita gente. Morava num alojamento, quartinhos, com parede de cimento caiada. Só tinha água fria, mas era um calor do capeta. Era privada turca, aquela no chão, eu nunca tinha visto isso na vida.
Comprometeu sua vaidade?
Imagina! Não sou perua até hoje, mas acordava, lavava meu cabelinho, fazia minha escovinha, punha minha roupinha passada – que eu repasso todos os dias até hoje. E era roupa de missão. Eles avisavam: “Não venham trazer seus tailleurs, porque não vão usar”. Eu mesma fazia minha unha, cortava meu próprio cabelo, estava sempre arrumadinha. Eu via aquela mulherada com os pés sujos. Tinha umas europeias lá que pelo amor de Deus, uma coisa horrorosa. Tem que passar batonzinho, Nossa Senhora. Aí fazia os processos, subia montanha para achar e recolher os cadáveres. Adorava tudo. Fora o chefe que eu tinha na missão, né? Sergio Vieira de Mello: lindo, charmoso, inteligente, humilde, um exemplo. Foi muito bom. Peguei até cólera.
Como foi?
Tinha que escovar os dentes com água mineral, mas ganhávamos só cinco litros por semana. Eu bebia, fazia chá. E usava a água do país para o resto. Comia salada lavada sei lá de que jeito (risos). O diagnóstico demorou, perdi peso, desidratei. Ao voltar para o Brasil não estava 100%.
Quando voltou, as crianças lembraram do seu rosto?
Sim (risos). As mães acham que são super-heroínas, insubstituíveis. Tinha medo de eles adoecessem. Não tiveram nem gripe. E ninguém ficou traumatizado, nem teve que ir para psiquiatra (risos). /DÉBORA BERGAMASCO