Da Revista Veja
A meta lançada em 2008 pelo Reuni, o Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais, é ambiciosa: dobrar o número de alunos de graduação até 2018. Assim, a década a ser contada a partir da metade do segundo governo de Luiz Inácio Lula da Silva, nesse quesito, poderia ser de glória para o ensino no Brasil, com a criação de mais portas de entrada no ensino superior público e a formação de profissionais e acadêmicos fundamentais para sustentar a transformação estrutural de que o país necessita para seguir em frente. A análise fria dos números mostra que, de fato, mais alunos ingressaram nessas instituições de ensino e novos cursos foram abertos no interior dos estados. Mas a meio caminho do ano estabelecido como alvo pelo programa o que se vê é um abismo entre teoria e prática na criação de cursos, vagas e infraestrutura para as levas crescentes de universitários.
A situação no Rio de Janeiro é emblemática. O estado que concentra quatro das principais universidades federais brasileiras ganhou 6.397 novas vagas – passando de 21.023 para 27.420, um crescimento de 30% nos primeiros dois anos da ‘década de ouro’ planejada pelo governo federal. Nada mal, se a ideia for criar formalmente posições de matrícula. Mas na instituição que mais cresceu no Rio, a Federal Fluminense (UFF), onde foram abertas 2.056 posições de 2008 a 2010, o quadro não é exatamente de uma ampliação da qual a população fluminense possa se orgulhar. A saída para promover o crescimento a toque de caixa foi alocar turmas em contêineres, em vez de salas com a estrutura que pede um curso universitário. Ou seja: grande parte do que se comemora como expansão do ensino superior estuda, atualmente, em universidades de lata.
A melhoria nas condições das faculdades Brasil afora faz parte da pauta de reivindicações da greve prestes a completar dois meses. E é uma queixa que une mestres e alunos. A UFF é o retrato, no Rio, de uma expansão desordenada. Antes mesmo do Reuni – projeto criado em 2007, e posto em prática no ano seguinte – havia uma política de interiorização dos campi das federais, iniciado em 2003. É aí que começa a história da UFF de Rio das Ostras, na região dos Lagos, onde atualmente há cerca de 40 contêineres que funcionam como salas de aula, salas de professores e estoque de material. As estruturas de lata usadas como módulos escolares custam, cada uma, dois mil reais por mês. A princípio, a universidade e a prefeitura firmaram convênios para que professores de Niterói, onde fica a sede, lecionassem na cidade. Em 2005, o executivo municipal de Rio das Ostras acusou a UFF de ser deficiente em sua prestação de contas. O Ministério da Educação entrou na discussão para repactuar a negociação e o polo deixou de ser uma extensão para se transformar em um campus autônomo.
Hoje, o quadro de docentes da UFF em Rio das Ostras não chega a 50% do necessário e o prédio prometido para estar pronto até 2009, para acomodar os alunos em salas, sequer teve o projeto aprovado. A estrutura principal é uma escola pública desativada, onde há 12 salas de aula para atender seis cursos – enfermagem, psicologia, produção cultural, ciência da computação, engenharia de produção e serviço social –, quase todos integralizados, ou seja, com todos os períodos em andamento. A prefeitura, que goza de orçamento irrigado pelos royalties do petróleo, fez doações de terrenos no entorno da escola para ampliar o campus. Até agora só foram construídos um alojamento e uma clínica para psicologia aplicada. Ambos estão fechados há quase dois anos, segundo relatos de professores, à espera do habite-se, que é dado pela própria prefeitura.
Com a falta de prédios, foi necessário recorrer às estruturas de lata para acomodar precariamente os estudantes. Aproximadamente 20 delas também são usadas como local para armazenagem de material comprado e guardado desde 2005. Há aparelhos de pressão, computadores, camas hospitalares, mesas, carteiras, quadros. “É Tudo o que deveria estar dentro dos prédios que não foram construídos”, explica o diretor do Instituto de Humanidades e Saúde da UFF de Rio das Ostras, Ramiro Piccolo. “No planejamento, era para termos um prédio com três blocos. Não saiu do papel. Agora são feitas obras para erguer um prédio multiuso, que será na verdade um tapa-buraco. Mas a ideia é tentar parar de usar os contêineres”, explica.
A unidade da UFF de Campos dos Goytacazes – outra cidade onde jorram os royalties – passa por problemas parecidos. Com o Reuni e a consequente expansão do campus, houve o projeto de erguer um prédio até 2010 para abrigar novos cursos. Em parte do terreno ainda nem foi feita terraplanagem. A solução adotada também foi a de espalhar contêineres. “Em 2010, começamos a alugar contêineres. Atualmente usamos cerca de 30. Para o próximo ano, precisaremos de mais 20 porque os cursos estão avançando e, além de demandarem salas, é necessário construir laboratórios. Estamos crescendo em estruturas provisórias. Crescer é motivo de orgulho para nós, mas temos problema de gestão do espaço. Temos custo, atraso de aluguéis de contêineres. Estamos inventando novas formas de gerir”, explica um professor que preferiu não se identificar.
De volta ao banco da escola – Em Angra dos Reis, a unidade da UFF divide o espaço com uma escola de ensino fundamental, apesar de desde 2009 ser prometido à universidade que as crianças serão realocadas em outro local. Antes disso, o curso de pedagogia funcionou por 17 anos em um colégio público, onde os estudantes do ensino superior sentavam-se em carteiras infantis. A mudança para o novo local, há três anos, ficou aquém do ideal. O único curso em Angra é o de pedagogia, que se somará ao de políticas públicas a partir do próximo semestre. O de geografia também está previsto para começar em breve. Quando isso acontecer, não haverá espaço, e pode ser que mais contêineres apareçam pelas unidades do interior.
Como a estrutura cedida para a universidade era um antigo alojamento, há outros tipos de problemas. Todos os aparelhos de ar condicionados, por exemplo, não podem ser ligados. O motivo: a rede elétrica não aguenta e houve pane quando, no verão, tentou-se refrigerar as salas. As calhas, de acordo com docentes, estão entupidas. Quando chove, o que acontece com frequência no município, a biblioteca fica alagada. “Nós professores e os alunos corremos para retirar a água, porque o pessoal da limpeza não dá conta”, conta um docente.
Os contêineres da UFF são um caso extremo. Mas os problemas estruturais se repetem em formas e graus diferentes nas outras federais do Rio. Em maio, veio à tona a precariedade das instalações da UFRJ em Macaé, no Norte Fluminense. Cinquenta estudantes do curso de medicina criado naquela cidade desembarcaram na capital do estado para ter aulas na Ilha do Fundão. A primeira turma de medicina da UFRJ de Macaé foi aberta no segundo semestre de 2009, dentro da política de expansão do Reuni. Mas, novamente, descobre-se que criar números de matrícula e expandir o ensino universitário são coisas bem distintas.
Com a falta de professores em Macaé, os estudantes passaram parte do ciclo básico em turmas da nutrição e da enfermagem. Segundo os estudantes, havia apenas 12 docentes do curso de medicina, nem todos com diploma de médicos, pouquíssimos com mestrado ou doutorado no currículo. Os professores chegavam a pedir ajuda da turma para planejar a aula e discutir o cronograma. Não havia sequer um laboratório de anatomia, o básico do curso, que põe o estudante em contato com o corpo humano.
No Rio, o grupo de Macaé disse ter sentido uma grande diferença no ensino. Para corrigir o desnível, foi preciso repor aulas em um período abaixo, pois o conteúdo não havia sido plenamente contemplado em Macaé. “Parece aula de outro mundo”, diz Daniele Guedes Allan, de 29 anos, em referência à maior qualidade dos professores do Rio.
Este ano, em abril, todos os matriculados na faculdade de medicina de Macaé entraram em greve por 40 dias. Uma comissão composta pelo reitor, vice-reitor, diretor do curso de medicina do Rio e mais dois professores foram à cidade verificar os problemas. No município, detectaram que nem o hospital Público Municipal de Macaé nem o hospital São João Batista estavam aptos a receber as turmas de 5º período, momento em que começam as aulas práticas. A solução encontrada foi a transferência das turmas. Os estudantes começaram a frequentar o Hospital Universitário Clementino Fraga Filho, no Fundão, e em seguida foram transferidos para o Hospital Geral de Bonsucesso, no Rio.
De acordo com o diretor-geral do campus de Macaé, Gilberto Zanetti, os problemas estão sendo contornados. A universidade firmou convênio com o SUS há cerca de duas semanas, e os alunos passarão a ter aulas nos hospitais da cidade do Norte Fluminense. “Estamos criando uma rotina. Não estamos em uma”, diz Zanetti, confirmando o estado de instabilidade que as planilhas do Reuni não mostram.