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O socorro está em perigo

Popularmente conhecido como Samu, o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência tem fama de ser eficiente. Em situações como a de infarto, queimadura grave e afogamento, pede-se ajuda pelo 192. Na maioria dos casos, a ambulância chega de imediato, às vezes em poucos minutos. Entre 2012 e 2013 foram realizados 158239 procedimentos a bordo de 38 viaturas. Porém, enquanto enfermeiros, motoristas e médicos se arriscam nas ruas para salvar vidas, gestores do programa cometem erros que indicam, ao núnimo, uma trapalhada com o dinheiro público. Do ponto de vista técnico, houve uma bizarra tentativa de desvio das verbas do programa.

Documentos a que VEJA BRASÍLIA teve acesso mostram que as autoridades responsáveis pelo Samu reservaram recursos para despesas incompatíveis com os serviços realizados em uma ambulância. No caso mais evidente, o governo tentou gastar 900000 reais em um curso de inglês para os funcionários. O objetivo seria treinar o pessoal para atender estrangeiros durante a Copa do Mundo. A ideia se mostrou tão absurda que o governo anunciou seu cancelamento assim que foi procurado pela reportagem. O argumento foi que eram esperados 800 alunos e só apareceram quarenta. Nesse caso, vale uma pergunta: por que as autoridades não fizeram antes uma pesquisa para saber quantos servidores tinham interesse em aprender a lingua?

Os desafios ao bom-senso vão muito além. Na lista de compras, consta um aparelho que realiza, entre outros exames complexos, um teste de gravidez conhecido por Beta-HCG. Trata-se de um procedimento importante para uma paciente hospitalizada, mas que não faz parte dos serviços de emergência. A lista oficial inclui também a aquisição de focos cirúrgicos, o nome de equipamentos de iluminação próprios para salas de operação – não para uma ambulância. Total dessa fatura: 946231 reais. A mesma falta de critério se aplica às ampolas PCR indicadas para detectar infecções em estágio avançado. Elas nada têm a ver com o resgate de pacientes. Na contabilidade oficial aparecem ainda gastos com a lavagem de roupas do Hospital de Santa Maria. Aqui, estamos diante de uma dupla irregularidade. Primeiro, não compete ao Samu custear as despesas de um hospital. Em segundo lugar, os lençóis usados nas ambulâncias são descariãveís, Foram relacionadas também 6314 bolsas de colostomia, usadas para armazenar fezes ou urina de pacientes que passaram por delicada cirurgia no aparelho digestivo. Mais uma vez, não se trata de procedimento adequado para ser feito em um carro em movimento.

Criado em 2003 pelo governo federal com verbas do Sistema Único de Saúde (SUS), o Samu passou a funcionar no DF em 2005. Foi planejado como um programa de excelência. Mas, ao mesmo tempo em que o governo daqui prevê gastos de alguns milhões em compras equivocadas, os socorristas de Ceilândia fazem vaquinha para adquirir material de limpeza e de manutenção do posto onde ficam as ambulâncias na região. No Paranoã, a unidade foi construída com dinheiro doado por comerciantes locais. E lifiação elétrica foi financiada pelos médicos e enfermeiros do programa.

No total, dos 23,4 milhões de reais êmpenhados para o Samu no Distrito Federal em 2013, praticamente 8 milhões se referem a itens estranhos ao serviço. É difícil acreditar, mas todos eles estão detalhados em documentos da Secretaria de Saúde. Esses papéis burocráticos, chamados notas de empenho, são gerados no sistema de controle de gastos todas as vezes em que o governo assume o compromisso de pagar um fornecedor. Neles estão discriminados quem vendeu o produto ou serviço, quanto custou e qual a fonte dos recursos.

A lista de empenhos feita pela Secretaria de Saúde chamou a atenção de um grupo de médicos do programa. Como se trata de verba federal, no ano passado alguns desses profissionais fizeram uma denúncia à Controladoria-Geral da União (CGU). O órgão de controle abriu um processo para analisar o caso.

Flagrado na esperteza, o governo recuou. Em novembro, antes que a CGU se manifestasse, a Secretaria de Saúde mandou cancelar o empenho de compra dos testes de gravidez. Em seguida, desistiu dos focos cirúrgicos. Os dois pagamentos reservados para a lavanderia de roupa hospitalar foram igualmente anulados. Segundo o secretário de Saúde, Rafael Barbosa, nesse caso foi cometido um “erro material”. Um funcionário teria colado nessa nota de empenho a descrição de um serviço prestado por uma concessionária de carros, sem. nenhuma relação com os resgateso Quanto a testes de gravidez, insumos para exames sofisticados e focos cirúrgicos, a secretaria diz que previu os gastos porque pretendia “incrementar” o atendimento. Os itens seriam acomodados nas “salas vermelhas” e “de trauma”. Inventados pelo governo do Distrito Federal, esses espaços são uma espécie de extensão das ambulâncias. Como acontece com nossas tesourinhas, só existem aqui. Mas o argumento não colou, e essa despesa também foi expurgada.

Em relação aos gastos feitos em Ceilândia por servidores para adquirir material de limpeza e de manutenção, a gerência do Samu diz que não pode impedir as pessoas de tomar esse tipo de atitude. No caso da construção do posto do Paranoã, também arcada por particulares, a explicação é que o dinheiro do governo federal não pode ser investido em obras, apenas no custeio dos serviços. Aqui cabe outra pergunta: não seria o caso, então, de o governo do Distrito Federal pagar a construção da unidade de atendimento com as próprias verbas? Assim, não precisaria recorrer ao bolso de seus funcionários ou de empresários.

De todos os gastos estranhos, o único ainda não cancelado foi o das bolsas de colostomia. Para tomar a decisão, talvez seja o caso de chamar uma junta médica.

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